Os militares do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais se tornaram referência de heroísmo pela maneira abnegada com que trabalharam para resgatar vítimas do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrida em 25 de janeiro em Brumadinho, e em Mariana, com rompimento da Barragem do Fundão, que amanhã completa quatro anos. A face visível do trabalho na zona quente em busca dos corpos de vítimas impressiona. No entanto, podemos dizer, sem medo de errar, que a ação dos bombeiros em tragédias dessa dimensão é de complexidade ainda maior do que demonstram as imagens impressionantes de homens avançando com dificuldade sobre o mar de lama ou exauridos depois de um dia intenso de busca.
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A publicação ficou pronta pouco tempo antes do segundo desastre da mineração, ocorrido em Brumadinho, e traz os bastidores de uma das maiores operações de resgate do Brasil, quando a corporação se viu diante do tsunami de lama e rejeitos que sepultou Bento Rodrigues, atingiu outros distritos de Mariana e sufocou o Rio Doce até sua foz, no Oceano Atlântico. Os relatos, que não devem nada a filmes de ação, mostram resgates heroicos, de pessoas retiradas da lama ou de outras alertadas antes de a onda de rejeitos chegar. Revelam momentos em que as decisões dos bombeiros significaram vidas salvas, mas que colocaram as vidas dos próprios militares em risco.
Em 5 de novembro de 2015, foram salvas cerca de 273 pessoas em Paracatu de Baixo e 500 em Bento Rodrigues, alertadas sobre o avanço da lama de rejeitos de minério de ferro. “Não dava para entender nada daquilo, só víamos fumaça e um rio de lama descendo”, relata o soldado Magalhães, sobre o dia D em Mariana, quando o helicóptero que tripulava quase caiu, momentos antes de a equipe avistar uma mulher e um menino sendo arrastados pela lama.
Ao retratar a dramaticidade e intensidade daquele que se configurava então como o maior desastre socioambiental da história do país, o capitão Farah conduz o leitor ao cenário de destruição em que se converteram os distritos da cidade histórica mineira. “Muita gente me dizia que a experiência daria um filme. Então, veio a ideia de imortalizá-la por meio de um livro. Queria mostrar que homens comuns fizeram coisas extraordinárias”, afirma.
A narrativa não segue forma linear, o que permite que Farah retome lembranças, como o momento em que entrou na corporação, aos 19 anos, ou os treinamentos de que participou, no início da carreira, como recruta e, tempos depois, os que conduziu como oficial. Nos momentos de aparente calma nos batalhões, os bombeiros passam por treinamentos exaustivos para testar limites diante de situações extremas, como a falta de alimento, de água e a missão de enfrentar o frio.
Chama atenção o esforço em simular a experiência vivenciada pelas vítimas, para que os militares saibam o que passam as pessoas que eles têm que resgatar. “Sempre pesei a mão no treinamento, para testar nossos limites. Mas, quando chegamos a Mariana, vimos que aquilo que treinávamos não chegava nem perto da realidade. Vi que os treinamentos não tinham nada de exagero”, afirma o capitão Farah, comandante da Companhia Operacional de Busca e Salvamento do Batalhão de Emergências Ambientais e Respostas a Desastres (Bemad).
Na narrativa, capitão Farah dá visibilidade a muitos militares, traçando perfis da personalidade de cada um, e dando crédito ao que fizeram na operação de resgate, embora nem todas essas ações tenham ganhado visibilidade pública em reportagens da época. “Não gosto de falar em comandados, são companheiros. Não fiz nada sozinho. Quando dá certo, é devido a esse grupo de militares, pessoas em que confio tanto. A ideia de ter um ‘Corpo de Bombeiros’ é valorizar o conjunto. Não é a individualidade. Convivo com alguns desses militares há mais de 14 anos”, afirma.
O compromisso dos bombeiros com o resgate e salvamento demonstra que abraçar a carreira, como muitos dos leigos desconfiam, é mesmo uma vocação. O exercício da profissão por si só requer pessoas abnegadas, sempre prontas e dispostas. Afinal, como destaca Farah, “as tragédias não têm hora nem lugar para acontecer. Nem escolhem as pessoas que acometem”. Muitas vezes, por ironia do destino, ao chegar a uma ocorrência o militar se depara com o fato de uma das vítimas ser alguém conhecido, do seu ciclo.
Lançamento
Além da lama
Leonard Farah
Editora Vestígio
208 páginas
Sempre um Papo, amanhã, às 19h30.
Auditório da Faculdade de Direito da UFMG – Avenida João Pinheiro, 100
'Agradeça a tudo o que deu errado na sua vida'
O capitão Leonard Farah conta que levou um ano para escrever o livro e que enviou para muitas pessoas antes de ser editado pela Autêntica. “Tive dificuldade de publicar. Quem aceitaria um estreante que nunca escreveu, um bombeiro?”, diz. Mas o texto, além de trazer a força de quem testemunhou a operação tão de perto, traz qualidade literária. Uma das preocupações de Farah foi não tornar o relato uma descrição técnica da atuação dos bombeiros, como é a linguagem em um boletim de ocorrência. “Sempre gostei muito de ler, principalmente livros com histórias reais de guerra”, diz. Ele avalia que o recurso de flasback permite olhar para o passado em perspectiva. “Queria ser médico. Por acaso não fui. Agradeça a tudo o que deu errado na sua vida. Há um propósito na frente”, diz Farah.
Apesar de, ao ler a narrativa, ser automático dizer que os bombeiros atuaram como heróis, o capitão Farah tenta se distanciar dessa designação. “Pegam os bombeiros como heróis, mas somos pessoas comuns, especializadas no impossível. Quis trazer o cotidiano e a rotina para verem que somos iguais, pessoas comuns. Quero mostrar que pessoas comuns podem fazer coisas extraordinárias.” E o livro traz também passagens pitorescas, como a descrição da forma apressada com que os militares comem, porque antes de terminar podem ser escalados para uma missão, e ainda a preocupação em manter a barba bem feita, o que demonstra o zelo e ajuda a dar mais tranquilidade a quem precisa da ajuda deles.
Para atuar na linha de frente de resgate de tragédias, capitão Farah buscou aperfeiçoamento – pós-graduou-se em gestão de emergência e desastres (Universidade Federal Fluminense), fez mestrado em engenharia geotécnica de desastres naturais (Universidade Federal de Ouro Preto) e especialização em gestão de desastres (Jica Tokyo, Japão). Liderou equipes em Mariana, no rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão e em Moçambique, atingida por desastres naturais.
Mas a ocorrência mais difícil não foi nenhuma das três, avalia. Ele lembra que, em Mariana e Brumadinho, havia uma retaguarda. A missão mais difícil foi na cidade de Sardoá, no Vale do Rio Doce, onde uma casa foi soterrada. “Depois de conseguir chegar lá, ficamos isolados por cinco dias. Não chegava nada. Tomávamos água do córrego e comíamos banana frita. Não havia recursos. Só tínhamos uns aos outros”, recorda-se.