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Estado de Minas MARIANA, 4 ANOS DEPOIS

O impossível em 1ª pessoa: capitão relata horas mais críticas da tragédia de Mariana

Na data em que a tragédia completa mais um ano, capitão dos bombeiros lança livro sobre as primeiras 15 horas da operação resgate, descritas por quem viu a morte - e a vida - de perto


postado em 04/11/2019 06:00 / atualizado em 04/11/2019 07:58

Capitão Leonard Farah, de 35 anos, do Corpo de Bombeiros, autor de Além da lama(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)
Capitão Leonard Farah, de 35 anos, do Corpo de Bombeiros, autor de Além da lama (foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press)

Os militares do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais se tornaram referência de heroísmo pela maneira abnegada com que trabalharam para resgatar vítimas do rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, ocorrida em 25 de janeiro em Brumadinho, e em Mariana, com rompimento da Barragem do Fundão, que amanhã completa quatro anos. A face visível do trabalho na zona quente em busca dos corpos de vítimas impressiona. No entanto, podemos dizer, sem medo de errar, que a ação dos bombeiros em tragédias dessa dimensão é de complexidade ainda maior do que demonstram as imagens impressionantes de homens avançando com dificuldade sobre o mar de lama ou exauridos depois de um dia intenso de busca.

 

A excepcionalidade técnica da operação de Mariana aparece no testemunho em primeira pessoa do capitão Leonard Farah, de 35 anos, autor de Além da lama, da editora Vestígio (Grupo Autêntica), que será lançado amanhã. A publicação, que se concentra nas 15 horas que sucederam a tragédia de Mariana, é enriquecida também pelo relato pessoal do soldado Magalhães.

 

A publicação ficou pronta pouco tempo antes do segundo desastre da mineração, ocorrido em Brumadinho, e traz os bastidores de uma das maiores operações de resgate do Brasil, quando a corporação se viu diante do tsunami de lama e rejeitos que sepultou Bento Rodrigues, atingiu outros distritos de Mariana e sufocou o Rio Doce até sua foz, no Oceano Atlântico. Os relatos, que não devem nada a filmes de ação, mostram resgates heroicos, de pessoas retiradas da lama ou de outras alertadas antes de a onda  de rejeitos chegar. Revelam momentos em que as decisões dos bombeiros significaram vidas salvas, mas que colocaram as vidas dos próprios militares em risco.

'Fechei os olhos e pedi a Deus que me desse a oportunidade de tentar ajudar alguém naquele mar de lama, mas eu só ouvia o barulho da sirene e já não escutava mais as vozes dos pilotos. Era difícil de acreditar em tudo aquilo, estávamos indo até lá não só para ajudar as pessoas, mas também, agora, prestes a virar vítimas'

Sargento Magalhães


Em 5 de novembro de 2015, foram salvas cerca de 273 pessoas em Paracatu de Baixo e 500 em Bento Rodrigues, alertadas sobre o avanço da lama de rejeitos de minério de ferro. “Não dava para entender nada daquilo, só víamos fumaça e um rio de lama descendo”, relata o soldado Magalhães, sobre o dia D em Mariana, quando o helicóptero que tripulava quase caiu, momentos antes de a equipe avistar uma mulher e um menino sendo arrastados pela lama.

 

Ao retratar a dramaticidade e intensidade daquele que se configurava então como o maior desastre socioambiental da história do país, o capitão Farah conduz o leitor ao cenário de destruição em que se converteram os distritos da cidade histórica mineira. “Muita gente me dizia que a experiência daria um filme. Então, veio a ideia de imortalizá-la por meio de um livro. Queria mostrar que homens comuns fizeram coisas extraordinárias”, afirma.

 

A narrativa não segue forma linear, o que permite que Farah retome lembranças, como o momento em que entrou na corporação, aos 19 anos, ou os treinamentos de que participou, no início da carreira, como recruta e, tempos depois, os que conduziu como oficial. Nos momentos de aparente calma nos batalhões, os bombeiros passam por treinamentos exaustivos para testar limites diante de situações extremas, como a falta de alimento, de água e a missão de enfrentar o frio.

 

Chama atenção o esforço em simular a experiência vivenciada pelas vítimas, para que os militares saibam o que passam as pessoas que eles têm que resgatar. “Sempre pesei a mão no treinamento, para testar nossos limites. Mas, quando chegamos a Mariana, vimos que aquilo que treinávamos não chegava nem perto da realidade. Vi que os treinamentos não tinham nada de exagero”, afirma o capitão Farah, comandante da Companhia Operacional de Busca e Salvamento do Batalhão de Emergências Ambientais e Respostas a Desastres (Bemad).

'Depois de colocar toda a farda, eu sempre conferia se os pingentes de São Jorge e de Nossa Senhora estavam no local de costume, colocava meu escapulário e verificava se meu terço estava no bolso. Em um primeiro momento poderia parecer exagero para qualquer pessoa que não vivencia a nossa profissão, mas já presenciei acidentes demais, mortes demais, ferimentos demais e já me machuquei muito em serviço. Portanto, toda proteção era necessária'

Capitão Farah


Na narrativa, capitão Farah dá visibilidade a muitos militares, traçando perfis da personalidade de cada um, e dando crédito ao que fizeram na operação de resgate, embora nem todas essas ações tenham ganhado visibilidade pública em reportagens da época. “Não gosto de falar em comandados, são companheiros. Não fiz nada sozinho. Quando dá certo, é devido a esse grupo de militares, pessoas em que confio tanto. A ideia de ter um ‘Corpo de Bombeiros’ é valorizar o conjunto. Não é a individualidade. Convivo com alguns desses militares há mais de 14 anos”, afirma.

 

O compromisso dos bombeiros com o resgate e salvamento demonstra que abraçar a carreira, como muitos dos leigos desconfiam, é mesmo uma vocação. O exercício da profissão por si só requer pessoas abnegadas, sempre prontas e dispostas. Afinal, como destaca Farah, “as tragédias não têm hora nem lugar para acontecer. Nem escolhem as pessoas que acometem”. Muitas vezes, por ironia do destino, ao chegar a uma ocorrência o militar se depara com o fato de uma das vítimas ser alguém conhecido, do seu ciclo.

 

Lançamento

 

(foto: Reprodução)
(foto: Reprodução)
Além da lama
Leonard Farah
Editora Vestígio
208 páginas

 

 

Sempre um Papo, amanhã, às 19h30.

Auditório da Faculdade de Direito da UFMG – Avenida João Pinheiro, 100 

 

'Agradeça a tudo o que deu errado na sua vida'

 

O capitão Leonard Farah conta que levou um ano para escrever o livro e que enviou para muitas pessoas antes de ser editado pela Autêntica. “Tive dificuldade de publicar. Quem aceitaria um estreante que nunca escreveu, um bombeiro?”, diz. Mas o texto, além de trazer a força de quem testemunhou a operação tão de perto, traz qualidade literária. Uma das preocupações de Farah foi não tornar o relato uma descrição técnica da atuação dos bombeiros, como é a linguagem em um boletim de ocorrência. “Sempre gostei muito de ler, principalmente livros com histórias reais de guerra”, diz. Ele avalia que o recurso de flasback permite olhar para o passado em perspectiva. “Queria ser médico. Por acaso não fui. Agradeça a tudo o que deu errado na sua vida. Há um propósito na frente”, diz Farah.

 

"Pegam os bombeiros como heróis, mas somos pessoas comuns, especializadas no impossível. Quis trazer o cotidiano e a rotina para verem que somos iguais" - Leonard Farah, autor de Além da lama (foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA Press -28/1/19)
Apesar de, ao ler a narrativa, ser automático dizer que os bombeiros atuaram como heróis, o capitão Farah tenta se distanciar dessa designação. “Pegam os bombeiros como heróis, mas somos pessoas comuns, especializadas no impossível. Quis trazer o cotidiano e a rotina para verem que somos iguais, pessoas comuns. Quero mostrar que pessoas comuns podem fazer coisas extraordinárias.” E o livro traz também passagens pitorescas, como a descrição da forma apressada com que os militares comem, porque antes de terminar podem ser escalados para uma missão, e ainda a preocupação em manter a barba bem feita, o que demonstra o zelo e ajuda a dar mais tranquilidade a quem precisa da ajuda deles.

 

Para atuar na linha de frente de resgate de tragédias, capitão Farah buscou aperfeiçoamento – pós-graduou-se em gestão de emergência e desastres (Universidade Federal Fluminense), fez mestrado em engenharia geotécnica de desastres naturais (Universidade Federal de Ouro Preto) e especialização em gestão de desastres (Jica Tokyo, Japão). Liderou equipes em Mariana, no rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão e em Moçambique, atingida por desastres naturais.

 

Mas a ocorrência mais difícil não foi nenhuma das três, avalia. Ele lembra que, em Mariana e Brumadinho, havia uma retaguarda. A missão mais difícil foi na cidade de Sardoá, no Vale do Rio Doce, onde uma casa foi soterrada. “Depois de conseguir chegar lá, ficamos isolados por cinco dias. Não chegava nada. Tomávamos água do córrego e comíamos banana frita. Não havia recursos. Só tínhamos uns aos outros”, recorda-se. 


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