"O tempo passa e a gente pensa que terá uma sensação de alívio, mas vai ficando mais sufocante. Não estou conseguindo lidar bem com isso. Mas, tenho certeza de que ela não está sofrendo. Está tudo bem. Nós é que estamos sofrendo. Cada dia uma notícia ruim. A gente começa a lembrar das pessoas e a sentir falta delas. Saudade é uma coisa que dói". As palavras, ditas pela analista de operações Lecilda de Oliveira, de 49 anos, foram para confortar uma amiga que, em 24 de janeiro, chorava a morte da mãe. Hoje, o áudio enviado por WhatsApp um dia antes do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho consola familiares e amigos de Lecilda, que esperam há exatos 305 dias os bombeiros encontrarem seu corpo. A analista é uma das 14 pessoas ainda desaparecidas em Brumadinho, tragédia que completa nesta segunda (25) 10 meses.
Lecilda trabalhava há quase 30 anos no complexo minerário e entrou na época em que ele era controlado pela empresa Ferteco. No trabalho, era madrinha de casamento e dos filhos de muitos colegas.“Ela era conhecida como Lecilda da Vale, porque além de ter um nome raro, trabalhou no departamento pessoal e criou vínculo com muitas pessoas. Era muito humana, pensava muito nos colegas e o pessoal da Vale a via como alguém que queria ajudar. Muitas pessoas que não conhecíamos vieram até nós dizer que o que minha irmã fez por elas nem gente da família fez. Ela fez diferença em muitas vidas e isso me enche de orgulho.”
Nas 14 famílias, a rotina é a mesma. Uma espera que parece não ter fim. O soar do telefone acende esperanças. Qualquer notícia toma uma proporção maior que o normal. O alerta é 24 horas. Toda quarta-feira tem reunião. Todos os dias, às 3h, cada um, de sua casa, faz orações pedindo pela oportunidade de fechar o ciclo da vida. E todo dia 25 tem o ato no marco de Brumadinho, para lembrar as vítimas da tragédia. Os parentes recebem dos bombeiros relatório diários sobre as buscas, o que inclui a quantidade de segmentos encontrados e em quais lugares. Se um corpo é achado, são os primeiros a saber imediatamente. O Instituto Médico-Legal (IML) também reporta diariamente o trabalho feito pelos legistas.
Na semana passada, dois corpos foram encontrados. Na quarta-feira, os bombeiros resgataram os restos mortais de João Marcos Ferreira da Silva, de 25, funcionário terceirizado que trabalhava como ajudante no complexo de extração de minério de ferro no momento da tragédia. Ele foi encontrado na área de busca denominada BH1 (barreira hidráulica). Na sexta, foi identificada Elis Marina Costa, de 24 anos, quarta vítima localizada neste mês de novembro. Tronco e crânio foram encontrados na região conhecida como Esperança, em profundidade de três metros, a cerca de 2 quilômetros da barragem que se rompeu."A lista de desaparecidos diminuiu, mas essas pessoas não foram encontradas, porque é um pedaço que está sendo sepultado. Todos estão na lama"
Arlete de Souza Silva, perdeu o filho
Uma angústia que se repete
"Quando recebemos a informação de que encontrou mais alguém, dá um pico de emoção. Ficamos loucos, numa angústia para mais detalhes, se é homem ou mulher. Rezamos muito para ser sempre exame de arcada dentária, cujo resultado sai com 6 a 8 horas", conta Natália. É uma adrenalina, porque pode ser um dos 14 ou segmento de uma pessoa que já foi sepultada. Passamos por isso várias vezes."
"Conto as horas e os minutos. Esperar meia hora é horrível. Imagina 305 dias. São mais de 7 mil horas. Vou ao psicólogo, ao psiquiatra, acupuntura, mas faço acompanhamento com pessoas não preparadas, porque ninguém nunca viveu nada parecido, nem imaginável", diz. Eram muitos planos para aquele fim de semana que se aproximava. Festa de aniversário e encontro com a família. Para o próximo mês, uma viagem marcaria seus 50 anos, em 27 de fevereiro. Lecilda era divorciada e morava com os filhos de 22 e 27 anos.
"Conto as horas e os minutos. Esperar meia hora é horrível. Imagina 305 dias. São mais de 7 mil horas. Vou ao psicólogo, ao psiquiatra, acupuntura, mas faço acompanhamento com pessoas não preparadas, porque ninguém nunca viveu nada parecido, nem imaginável", diz. Eram muitos planos para aquele fim de semana que se aproximava. Festa de aniversário e encontro com a família. Para o próximo mês, uma viagem marcaria seus 50 anos, em 27 de fevereiro. Lecilda era divorciada e morava com os filhos de 22 e 27 anos.
A mãe, de 77 anos, perdeu a oportunidade de obedecer ao curso natural da vida. "Não teremos a possibilidade da morte natural e da despedida. Quando encontrarem, será um enterro de caixão fechado. Não sabemos nem se vai encontrar a pessoa toda", afirma. "A gente dorme e acorda pra viver o pesadelo", relata. Para ela e tantos outros, parar as buscas não é uma opção. "Os bombeiros não vão salvar a vida da Lecilda mais, mas sim a minha, dos meus familiares e amigos. Bombeiro é para salvar vidas, não corpos."
Dias de dor e indignação
Uma dor pessoal e só quem sente sabe o tamanho da carga. Foram muitos que enterraram apenas segmentos. Logo no início das buscas, marcou a imagem de uma mulher que chegou ao IML, em Belo Horizonte, com um terno para vestir o marido encontrado em meio à lama e se deparou com apenas uma perna. Na lista dos 256 mortos em Brumadinho está o filho da dona de casa Arlete Gonçala de Souza Silva, de 56 anos. Em maio, Vagner Nascimento da Silva, de 39 anos, foi identificado pelo IML, mas a mãe não reconhece o resultado. “Não aceito a perna. Como há possibilidade de encontrar mais, vou aguardar. Se ele fosse o último, encerraria tudo. Mas, estou pegando carona em quem ainda está lá. Muitas pessoas sepultaram pé. Essas buscas são hipocrisia pura. Muita gente falou com pai e mãe que era corpo, para acalmá-los”, lamenta.
"Ter deixado acontecer o que aconteceu foi muita falta de amor ao próximo. E as famílias mostraram ainda mais desamor ao aceitar um pedaço de cada um. A lista de desaparecidos diminuiu, mas essas pessoas não foram encontradas, porque é um pedaço que está sendo sepultado. Todos estão na lama, essa é a realidade”, afirma. “O sono não é mais o mesmo. O cérebro só fica pensando isso. A comida não tem mais gosto. Não tenho vontade de fazer nada", desabafa."Quando recebemos a informação de que encontrou mais alguém, dá um pico de emoção. Ficamos loucos, numa angústia para mais detalhes"
Natália de Oliveira, perdeu a irmã
O marido, de 61 anos, só chora. A filha, de 25, também não se conforma e corrobora a decisão da mãe. Vagner deixou uma filha de 16 anos e a mulher. Trabalhava como operador de máquinas na Vale há 13 anos. A última vez que a mãe o viu foi naquela sexta, logo cedo, saindo para trabalhar. “Meu filho está em primeiro lugar. Quero só os ossos dele para levar para o lugar certo”, diz. Se os 14 desaparecidos forem encontrados antes, ela sabe o que fazer: “Terei de fazer o sepultamento como os outros fizeram, mas porque eles fizeram assim, não porque eu quero.”
Enquanto o telefone não toca com as palavras tão esperadas, mães, maridos, esposas, filhos, irmãos vão vivendo em dor, numa ferida aberta que precisa fechar. Cada um a seu modo. Num choro diário, de alma dilacerada. Arlete segue firma em suas posições, centrada em seu amor de mãe. Natália de Oliveira se apega à voz doce da irmã, naquele áudio de consolo: “Mas, fica bem, tá? Vamos ficar bem. Deus vai nos mostrando que a gente tem ainda alguma coisa a fazer por aqui. Muitas coisas boas.”