Nos últimos anos, a tecnologia alterou inúmeros aspectos da vida cotidiana, da mobilidade nas grandes cidades, a partir dos aplicativos de transporte, até a forma como se pede comida, por meio das plataformas de delivery. A revolução, no entanto, vem acompanhada de muita polêmica, que se estende, agora, também às consultas médicas, com a chamada telemedicina. Ainda embrionária no país, a tecnologia usa as telecomunicações, por meio de videoconferências, para facilitar a relação entre médico e paciente, concentrando foco no chamado primeiro atendimento, que pode ser uma simples renovação de prescrição médica ou um pedido de encaminhamento ao especialista.
O que parece um avanço, no entanto, levanta debates da comunidade médica, que questiona a viabilidade de startups como a Teldoctor, que começou neste semestre a oferecer o serviço em Minas Gerais. Os questionamentos se concentram, principalmente, no sigilo das informações compartilhadas por quem faz a consulta a distância e na falta de regulamentação do tema.
Assim como em outras áreas da chamada “economia disruptiva”, os debates que cercam a telemedicina causam um vaivém na legislação. Em fevereiro, a Resolução 2.227 do Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou o serviço no Brasil. O texto permitia que médicos realizassem “consultas on-line, assim como telecirurgias e telediagnóstico, entre outras formas de atendimento médico a distância”.
A reação da comunidade médica foi imediata. Em 22 de fevereiro, o mesmo órgão, responsável pela fiscalização e normatização da prática médica no país, revogou a norma, “em virtude do alto número de propostas encaminhadas pelos médicos brasileiros para alteração dos termos”. As reclamações ultrapassaram a marca de 1,4 mil, segundo o CFM. Uma consulta pública ficou aberta até 31 de julho e seus resultados servirão para nortear novas discussões sobre o tema. Depois, o conteúdo segue para o plenário da instituição.
Atualmente, a telemedicina é praticada com base na Resolução 1.643/2002, também do CFM. “O conselho acredita que a telemedicina é de extrema importância para o desenvolvimento da prática médica, mas que precisa de regulamentação. Em algumas ocasiões pode acontecer uma consulta virtual, desde que nas duas pontas haja médicos, ou seja, discutindo determinado caso. O conselho é contra a consulta entre médico e paciente via telecomunicações”, explica a presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM/MG), Cláudia Navarro Carvalho Duarte Lemos.
Segundo ela, a maior preocupação da categoria diz respeito ao sigilo das informações do paciente, que podem ser expostas em caso de vazamentos ou falhas no sistema usado para executar a consulta a distância. “Temos que valorizar a relação médico-paciente e a importância de o profissional examinar o paciente para fazer um diagnóstico benfeito. Essa teleconsulta pode dificultar essas questões”, opina.
TENDÊNCIA Pesquisadora da área, Débora Muchaluat Saade, professora titular do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense (IC-UFF), também se preocupa quanto à segurança dos dados dos pacientes. “Tem uma série de pesquisas na academia para tornar esses sistemas mais seguros, mas ainda estão em aberto. Não existe uma garantia 100% de que usando determinado sistema seus dados estejam completamente seguros”, alerta.
Contudo, a pesquisadora ressalta que a telemedicina já se tornou alternativa fora do Brasil. “A inovação vem sendo usada em outros países, onde a regulamentação já é mais flexível. Tive contato com uma empresa que fornece serviços de telemedicina na Inglaterra, na Austrália e em países da África. Eles têm uma solução que parece ser superinteressante: uma teletriagem usando a inteligência artificial”, explica.
Segundo a professora, o paciente, nesse caso, conversa com um computador. Ainda assim, ela ressalta que não há um sistema hegemônico na comunidade médica mundial, ou seja, todos os modelos passam por período de experimentação.
EXPERIÊNCIA POSITIVA Em meio às incertezas que ainda cercam a telemedicina, Rodrigo José Carvalho dos Santos, de 41 anos, morador de Taubaté (SP), usou os serviços da startup que entrou no mercado mineiro para tratar de uma dor de garganta. “Eu estava em Ubatuba, no litoral, com amigos, quando tive uma dor de garganta. Minha família trabalha com uma rede de farmácias de manipulação e decidi experimentar o serviço”, conta o administrador de empresas. “O médico da Teldoctor me receitou um antibiótico e a receita veio com um código, que foi aceito pelo farmacêutico. Ele até me disse que recebia outras (receitas) iguais (expedidas via telemedicina)”, conta.
Quanto ao sigilo das informações, principal preocupação dos médicos, Rodrigo afirma que as pessoas estão, em certa medida, sujeitas ao compartilhamento dos seus dados no mundo mo- derno. “A gente sempre se preocupa com o sigilo. Quando a gente vai comprar uma televisão, eles (os lojistas) sempre solicitam um cadastro. A gente pensa: 'Se estou pagando à vista, por que eles querem meus dados?'. A preocupação (quanto à segurança da telemedicina) existe, mas jamais um médico pode divulgar os dados. Se uma empresa quer crescer, ela vai seguir parâmetros para se manter segura”, defende.
Com capacidade para realizar até 150 mil triagens médicas a distância por mês, a startup que presta o serviço em Minas usa um modelo de plataforma tecnológica, no ar há oito anos no Brasil, que contabiliza mais de 375 mil pacientes nas áreas de cardiologia, medicina preventiva e saúde sexual. A plataforma informa ter sido aprimorada com inteligência artificial desenvolvida nos EUA, o que permite a ampliação do corpo clínico e o atendimento a diversas especialidades médicas.
A Amil, uma das maiores empresas de planos de saúde do Brasil, também lançou seu sistema de telemedicina. O serviço se destina a 180 mil clientes da linha premium da companhia, e é prestado pelo Hospital Albert Einstein. O intuito é atender pacientes com queixas comuns, como gripe, tosse e dores de garganta, barriga, cabeça e costas.
Entre o avanço e a fragilidade
Diante do vaivém do governo federal quanto ao programa Mais Médicos e a defasagem do atendimento médico em cidades afastadas, a telemedicina pode ser alternativa para resolver limitações. Ao menos é o que defende o médico Luís Henrique Pereira, fundador e diretor-técnico da Teldoctor. “O objetivo da telemedicina é promover o acesso à saúde no país, tanto para quem quer agilizar a ida ao médico quanto para moradores de regiões mais afastadas, onde não há corpo clínico suficiente para receber pacientes”, defende.
O argumento, no entanto, é rechaçado pela presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM/MG). “Isso tem que ser muito bem estudado. Não acho que seja a maneira ideal de você suprir as terras longínquas. Um serviço para cuidado médico não é pela telemedicina. Não é a realidade nem o que o conselho recomenda”, critica Cláudia Navarro.
Outro ponto sustentado por quem defende a telemedicina é a movimentação que o serviço pode causar no mercado financeiro. Segundo Guilherme Hummel, coordenador científico da Sociedade de Sistemas de Gestão e Informação de Saúde (HIMSS, em inglês), os valores podem ultrapassar US$ 7 bilhões nos próximos cinco anos no Brasil. “Hoje, no mundo, há uma população de 7,3 bilhões de habitantes e a estimativa é de 1,3 patologia por habitante. Não há como a oferta de serviço chegar perto da demanda”, calcula Hummel.Telemedicina
Entenda aspectos da discussão por trás das plataformas de telemedicina
O QUE É?
» Telemedicina é o exercício da medicina com uso de tecnologias de comunicação audiovisual e de dados
O VAIVÉM DAS NORMAS
Resolução CFM 1.643/2002
» Atualmente, a telemedicina é regulada a partir desse texto, que permite o serviço apenas “com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em saúde”
Resolução CFM 2.227/2018
» Chegou a ser editada pelo conselho em 3 de fevereiro, mas foi revogada no dia 22 do mesmo mês. O texto definia a telemedicina como “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde”.
Artigo 37 do Código de Ética Médica
» O artigo salienta que “é vedado ao médico prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência”
Consulta pública
» Até 31 de julho, o Conselho Federal de Medicina recebeu sugestões da comunidade médica e das entidades sobre o assunto. As contribuições serão analisadas e deverão nortear novas decisões
ARGUMENTOS PRÓ E CONTRA
A favor
» Possibilidade de minimizar a defasagem de profissionais de saúde em cidades sem atendimento adequado
» Comodidade para o paciente, que não enfrenta filas
» Dinamismo no atendimento
» Reforço indireto ao sistema público de saúde
» Movimentação financeira do mercado
Contra
» Informações do paciente sob risco de falhas do sistema e hackers
» Falta de regulação por parte do Conselho Federal de Medicina, que ainda delibera sobre a questão
» Pouca concorrência no mercado
» Desinformação diante de uma tecnologia nova
» Necessidade de domínio mínimo da computação, o que pode excluir determinada camada da população
O QUE É OFERECIDO
» Renovação de prescrição médica
» Pedido de encaminhamento a especialista
» Tratamento de pacientes crônicos
» Reeducação alimentar
» Cuidados com o bebê
» Segunda opinião de médicos sobre diagnósticos
» Debate entre médicos sobre determinado caso
O QUE NÃO É OFERECIDO
» Prescrição de tratamento e outros procedimentos
» Telecirurgia
» Atendimento sem conexão com a internet
» Transmissão de procedimentos para outros médicos com fins educacionais
» Declaração de saúde para a contratação e adesão a plano de saúde