Dois de junho de 2019 era para ser uma data de comemoração para Ana Luíza Apolônio Silva, de 19 anos, que festejava o primeiro aniversário do filho. Deixou de ser quando o ex-companheiro dela, de 23 anos, chegou à casa dela, onde ocorria a festa, e estragou tudo. Agressivo, a ameaçou de morte. “Vou estourar sua cabeça”, dizia. Não parou por aí. A jovem e toda a família foram agredidas verbalmente. Diante da ameaça, Ana Luíza ficou assustada e temerosa de a que a promessa pudesse ser cumprida. Sem saber o que fazer, conversou com parentes, que a encorajaram a procurar a polícia. Desde então, o caso dela passou a ser um dos 200 monitorados diariamente pela Companhia Independente de Prevenção à Violência Doméstica, da Polícia Militar, criada em 2017 para atuar em toda a capital.
Em outros estados existem patrulhas ou rondas Maria da Penha, que dão prioridade ao monitoramento de medidas protetivas. Em Minas, a Polícia Militar se antecipa no atendimento de vítimas que não solicitaram proteção à Justiça e nem sabem como fazê-lo. E nessa rotina, os militares colecionam testemunhos de desrespeito, agressões e crueldade que se multiplicam em lares de todas as classes sociais. Mas também histórias que têm seus desfechos mudados a partir da intervenção policial. Na semana que marcou o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher, lembrado em 25 de novembro, o Estado de Minas buscou relatos de alguns desses abusos, transmitidos por aqueles que trabalham para preveni-los (leia ao lado).
As cicatrizes exibidas por essas vítimas – quando não no corpo, na alma – são a parte mais palpável de um conjunto de estatísticas assustador. De acordo com a Polícia Civil de Minas Gerais, em 10 meses deste ano foram registradas 121.987 queixas por violência de gênero no estado. São assustadores 12 mil casos por mês, em média, ou 406 ao dia, 16 por hora, um a cada três minutos e meio. No mesmo período, 32.730 medidas protetivas foram pedidas à Justiça mineira por vítimas contra agressores. Mesmo assim, 114 mulheres foram assassinadas pelos companheiros entre janeiro e outubro último.
O temor de que o agressor não seja punido leva muitas mulheres a desistir de apresentar denúncia. No entanto, casos como o de Ana Luíza demonstram que, quando o Estado provê segurança a quem pede socorro, a Lei Maria da Penha se mostra eficaz. Depois de registrar o boletim de ocorrência, a jovem passou a ser acompanhada pela Companhia de Prevenção à Violência Doméstica. O ex-companheiro passou a ser monitorado e tem que se manter distante dela, sob pena de ser preso. “Em mais de 90% dos casos de feminicídio, as mulheres não tinham pedido proteção. Isso prova que a medida protetiva é efetiva. As exceções devem ser tratadas à parte”, diz a major Cleide Barcelos dos Reis Rodrigues, comandante da unidade especializada da PM.
Desde que o descumprimento de medidas judiciais de proteção a mulheres passou a ser crime, a companhia mais que dobrou o número de prisões que faz. “O que falta muito às pessoas é o conhecimento. Por não saberem que o descumprimento das medidas protetivas é crime, não acionam a polícia. Se a vítima tem medida protetiva, em caso de ameaça ela deve acionar o telefone 190 imediatamente, para que uma viatura se desloque até o local e faça a prisão em flagrante do agressor. É crime e cabe condução para a delegacia”, alerta a major Cleide.
A crueldade relatada por quem vive para impedi-la
» Meio século
de humilhação
Foram 50 anos de violência – física, verbal, sexual, patrimonial. Depois de meio século sofrendo, a mulher decidiu quebrar uma rotina de dor, medo e humilhação. Na abordagem, os militares descobriram que o casal, já idoso, havia se unido muito jovem. O senhor, com idade entre 60 e 70 anos, tinha problemas de saúde devido a acidente de trabalho. No convívio diário, segundo relato da vítima, praticava violência não apenas contra a mulher, mas também contra as filhas do casal, degradando ainda mais o relacionamento familiar. Os abusos de natureza sexual fizeram com que a mulher desenvolvesse aversão ao sexo. Finalmente, ao buscar a Justiça, ela conseguiu medida protetiva. Ao ser informado por militares de que deveria sair de casa, o acusado reagiu com preocupação – com o próprio futuro: “E agora, quem vai cozinhar para mim? Quem vai lavar a minha roupa? Quem vai fazer as coisas para mim?”. Cumprida a ordem judicial, o homem se mudou. Depois de cinco décadas de sofrimento, a vítima hoje tenta reconstruir sua vida e, para isso, conta com monitoramento da unidade especializada da PM.
» Uma existência
aprisionada
A mulher de aproximadamente 30 anos já não suportava a rotina que a encarcerava havia cerca de oito anos. Com dois filhos com o agressor, relatou a militares da Companhia de Prevenção à Violência Doméstica que era proibida até mesmo de receber o próprio salário. Tinha direito a manter poucas peças de roupa. Contou que não podia ir ao banheiro e nem mesmo se alimentar sem ele por perto. Tudo o que fazia dependia de permissão ou de ordens do companheiro. Como se o relacionamento já não fosse suficientemente abusivo, a rotina do casal incluía violência física, verbal, moral, sexual e patrimonial. Os policiais encontraram uma vítima extremamente traumatizada, que chorava o tempo todo e desenvolveu verdadeiro pavor do homem que a subjugava. Após tomar conhecimento da situação, PMs da companhia compareceram à casa do casal como se tivessem recebido denúncia anônima de pessoas que a teriam ouvido gritando e pedindo ajuda. Questionado, o acusado disse: “Sempre deixei claro que ela pode seguir a vida dela, se quiser separar é tranquilo. Pode ir embora”. A mulher aproveitou a presença policial, juntou os poucos pertences que encheram uma sacola de supermercado e partiu. “Ele havia destruído tudo dela”, resume um dos policiais.
» Abuso reproduzido
na vida das filhas
Dependência financeira, abuso sexual infantil e violência naturalizada. Quando os policiais da companhia especializada chegaram até a vítima, constataram que o agressor era padrasto da filha mais velha da mulher, uma garota de 13 anos, e pai de duas crianças gêmeas de 3 anos. Na época, já havia um boletim de ocorrência por estupro de vulnerável, contra a adolescente, e indícios de abusos contra as crianças menores. Os policiais descobriram que a mulher já havia solicitado medida protetiva, mas a cancelou e voltou a se relacionar com o agressor, com a justificativa de que ele a ajudava financeiramente. Era a primeira demonstração de que não seria fácil ajudá-la. Depois que os militares intervieram, pedindo ajuda ao Conselho Tutelar e apoio para conseguir escola para as crianças, ela se mudou sem deixar endereço. Angustiados, os PMs tiveram de encerrar o caso. Souberam depois que as crianças haviam sido abrigadas, mas já não conseguiram localizar a vítima ou o autor. “Ela não seguia nossas orientações”, diz um dos militares. O histórico da mulher indicava que ela tinha sofrido abuso quando criança. “A vítima naturalizou a violência e transmitia isso para as filhas dela”, diz um integrante da companhia especializada.
Agressores sob orientação
A Companhia Independente de Prevenção à Violência Doméstica, da Polícia Militar de Minas, é descendente do Serviço de Prevenção à Violência Doméstica, criado em 2010 no estado. Hoje, a unidade conta com 42 policiais militares, de ambos os sexos. “O efetivo é composto por policiais masculinos e femininos. Damos prioridade ao contato com as vítimas, por intervenção da policial feminina, e com o autor, pelo policial masculino”, diz a comandante, a major Cleide Barcelos dos Reis Rodrigues.
Isso porque, além de visita tranquilizadora às mulheres vítimas de violência doméstica, os militares fazem visitas ao agressor e passam a monitorá-lo. O ex-companheiro de Ana Luíza Apolônio Silva, de 19 anos, uma das mulheres acompanhadas pela companhia especializada da PM, recebeu a visita dos policiais. “Há várias reações por parte do agressor. Nesse caso, o autor se mostrou inicialmente surpreso, por não esperar a visita da Polícia Militar e não saber da existência de serviço que vai monitorá-lo, levando orientação e, ao mesmo tempo, fiscalizando a atitude dele”, diz a cabo Michele Gontijo Silva, que atua na companhia desde 2018. Se o homem porventura descumprir a medida protetiva, a polícia pode desde relatar o incidente ao Poder Judiciário como até prendê-lo.
Os casos acompanhados são escolhidos a partir da análise dos boletins de ocorrência. “Analisamos os critérios de gravidade e reincidência. Escolhemos os casos mais graves, em que houve o registro de mais de um boletim de ocorrência”, informa a cabo Michele. O passo seguinte é encontrar a vítima para oferecer o serviço. “Fazemos visita a essas mulheres e apresentamos nosso trabalho, apresentamos a Lei Maria da Penha e todos os institutos protetivos que a legislação prevê, incluindo a medida protetiva.”
Casos de violência contra a mulher geralmente seguem um ciclo difícil de ser quebrado. “A mulher vítima de violência não pode ficar calada. Tem que denunciar, tem usar o 190. As ferramentas existem. Estamos aí para auxiliar e ajudar na resolução dos problemas que estão vivenciando”, afirma a cabo Michele Gontijo Silva.
A meta é sempre quebrar o ciclo de violência. “O nosso objetivo a partir dessa visita tranquilizadora é que não haja mais agressões. Muitas mulheres são vítimas e nem sabem, por pensar que violência é apenas física. Por meio da informação, conseguimos estabelecer o melhor encaminhamento para a vítima”, diz a cabo Michele. A Polícia Militar atua em parceria com o Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Casa Benvinda, que acolhe vítimas.
MONITORAMENTO O sargento André César Medeiros, que integra a companhia, é um dos que fazem a abordagem ao agressor. “Fazemos da maneira mais tranquila possível, procurando orientar”, diz o policial, que tem formação em psicologia. A vítima tem o direito de aceitar ou não o monitoramento, mas o agressor não tem escolha: é apenas notificado. “Avisamos que a ex ou atual companheira está sendo acompanhada e que, a partir daquele momento, ele passa a ser monitorado”, conta.
Segundo os militares da unidade, os agressores costumam negar e até tentam transferir a culpa para a vítima, em uma tendência de tentar desconstruir a realidade. No entanto, se não houver cooperação e insistirem na violência, os acusados acabam presos.
Nesse trabalho, o sargento aconselha aos homens que agem de forma machista que se abram para novas ideias. “Vivemos numa sociedade patriarcal, num momento de desconstrução mesmo do machismo. É ilusão achar que estamos totalmente livres disso. O recado para todos os homens é que tentem se abrir para novas ideias e entender as mulheres como iguais.”
Entrevista
'A violência está em todas as classes'
Major Cleide Barcelos dos Reis Rodriguescomandante da Companhia de Polícia Militar Independente de Prevenção à Violência Doméstica
Qual o perfil das vítimas da violência doméstica?
Muitos podem pensar que esse grupo é formado em sua maioria por mulheres da periferia ou que mulheres de regiões nobres solicitam menos intervenção para esses casos. Mas, dentro do nosso universo de atendimento, verificamos que a violência doméstica está em todos os lares, em todas as classes sociais, em todas as raças. É mais um problema de formação, de educação, de relações humanas. Mas violência é violência, independentemente de ser contra mulheres negras, brancas ou indígenas. Ato que não pode ser aceito em hipótese alguma, com qualquer tipo de mulher.
A conversa com o agressor surte efeito, ou a abordagem precisa ser mais enérgica, chegando à prisão?
Não se pode falar sobre prevenção à violência doméstica se não tratarmos com o agressor de forma repressiva, quando houver o cometimento de crime ou contravenção, mas também de forma instrutiva, de fazer com que entenda o contexto de violência doméstica em que está inserido. Alguns simplesmente não percebem que o que estão fazem é crime, seja por formação na família, seja pela personalidade. Mas o conhecimento é libertador. A partir do momento em que esse homem passa a compreender que o comportamento dele está trazendo sofrimento, é uma oportunidade de mudar. Não temos objetivo de separar o casal. Essa é uma decisão deles. Mas a decisão de mudança também cabe a ele. Se não mudar, vamos trazer todo o rigor da lei para que seja responsabilizado pelo que está fazendo.
Como é essa abordagem? Requer um conhecimento especializado, um cuidado maior?
Os policiais militares têm capacitação especializada para fazer o atendimento e acolhimento às vítimas de violência doméstica. Eles têm aula de abordagem psicológica, aula sobre a Lei Maria da Penha, diversas disciplinas que dão esse suporte para que possam estabelecer essa relação de confiança com a vítima, para que possa ter a liberdade de falar o que ela está vivenciando.