O verão começa no próximo dia 22, à 1h19, e recebe de herança, desta primavera, as novas flores que ornamentam os jardins projetados pelo paisagista Roberto Burle Marx (1909-1994), na década de 1940, para a Pampulha, em Belo Horizonte – cores, formas e harmonia saúdam, não apenas a troca de estações, como também a semana de aniversário da capital que, ontem, chegou aos 122 anos de sua inauguração. Para quem se encanta com o conjunto moderno, reconhecido como patrimônio da humanidade, vale a pena conferir as novidades: o jardim da Igreja São Francisco de Assis foi todo concluído, enquanto no Museu de Arte da Pampulha (MAP) falta pouco na parte da frente, ficando a área próxima à lagoa para depois do restauro do prédio.
E foi exatamente o MAP o local escolhido por três estudantes belo-horizontinas para um trabalho de escola, com gravação de um vídeo de dança – elas chegaram e ficaram à vontade no jardim, ensaiando os passos, fazendo poses e curtindo o verde das folhagens, o vermelho da cana-da-índia, marca registrada dos projetos de Burle Marx nos anos 1940, e o vinho do coração magoado. Ao trio formado por Ana Luíza Rodrigues, de 12 anos, Ana Júlia Amaral, de 13, e Alexssya Muniz, de 14, se juntou, pouco depois, Bianca Giovana Gomes, de 13, também do Colégio Tiradentes.
Para as garotas, vestidas a caráter, foi um momento de pura alegria e também de declarações à terra natal. Junto da mãe Luciene Paula, decoradora de festas e casada com um militar, Ana Júlia não escondeu a emoção diante da paisagem: “A cidade é como se fosse um pedaço de mim”. Mesmo com o MAP fechado para obras, Ana Luíza destacou que a capital representa arte e tem muitas belezas, enquanto Alexssya foi diretamente ao ponto – “Amo BH” – e Bianca não deixou por menos: “Belo Horizonte é especial, gosto de tudo aqui”.
Nas caminhadas, nas visitas aos equipamentos culturais ou simplesmente contemplando o espelho d'água, todas as gerações se encontram na Pampulha. Perto de completar 80 anos, o português Antônio Soares Ferreira contou que mora há 43 na cidade e acompanhou, de perto, as transformações no bairro onde vive e o qual considera o mais bonito da capital. “Quando cheguei aqui, a lagoa se prolongava até a Toca da Raposa, a água era muito limpa, não tinha tantas casas”, recorda-se o homem que trabalhou como comerciante e criou a família. Como nada é perfeito, moradores e visitantes pedem mais atenção com o cartão-postal da cidade, de forma especial com a limpeza da lagoa, que traz à tona um cheiro forte e, muitas vezes, insuportável.
Memória afetiva
Caminhando em torno da São Francisco de Assis, enquanto espera uma reunião numa empresa, o engenheiro metalúrgico carioca Marcos Contrucci, de 80, diz que conheceu bem a Pampulha nos “anos dourados” e enaltece as figuras de Juscelino Kubitschek (1902-1976), prefeito de BH na época da construção do templo dedicado ao protetor da natureza, Casa do Baile, MAP (antigo cassino) e Iate Tênis Clube, e Oscar Niemeyer (1902-2012), autor dos projetos arquitetônicos. “Lembro-me de quando a Avenida Antônio Carlos era uma estrada no meio do nada. Hoje a região está muito bonita, principalmente os jardins de Burle Marx”, afirma o carioca que, quando criança, morou em frente da casa do arquiteto, no Rio de Janeiro (RJ), e, pela intimidade, se refere a ele como Oscar. “Só não segui a profissão dele, a arquitetura, porque desenhava muito mal. Aquela época (anos 1940) foi de homens extraordinários”, destaca Contrucci.
O certo mesmo é que a Pampulha continua fazendo sucesso de público. Morador há quatro anos da capital, onde estuda teologia, o pastor presbiteriano Lucas Neves, de Governador Valadares, na Região Leste do estado, trouxe para passear a noiva, Rafaella Rabelo, e os pais, José e Diacuí. “Há 30 anos não via a igrejinha. Restaurada, está bonita demais”, afirmou Diacuí, cujo nome de origem indígena significa flor. Lucas também elogiou a arquitetura. “Curioso é que a parte de trás da igreja é mais bonita do que a frente”, comentou o pastor sobre a obra de Cândido Portinari (1903-1962) retratando a vida de São Francisco de Assis.
Conquista
Para entender melhor a Pampulha e a conquista, em 17 de julho de 2016, do título de Patrimônio da Humanidade concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) é preciso olhar no retrovisor do tempo e ressaltar alguns pontos. A história começa na década de 1930, com a construção da barragem da Pampulha para abastecimento de água da população, na administração do prefeito Otacílio Negrão de Lima (1897-1960), que pôs em prática o projeto do engenheiro Henrique de Novaes. Dez anos depois, quando assumiu a prefeitura, o prefeito Juscelino Kubitschek (1902-1976) decidiu ampliar a área da represa e fez um concurso para a construção de um cassino, embora não satisfeito com o resultado. Pediu então opinião a Gustavo Capanema (1900-1985), ministro da Educação do governo Getúlio Vargas, que o apresentou ao jovem arquiteto Niemeyer.
Capanema passara pela experiência de construir o prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, hoje Palácio Gustavo Capanema e primeira construção moderna no país. Para tanto, convidara o arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), que revolucionou a arquitetura mundial, sendo chamado de “pai da arquitetura moderna”. Niemeyer trabalhava na equipe que construía o prédio e, com aval de Capanema e do arquiteto Lúcio Costa (1902-1998), foi convidado por JK para trabalhar em BH.
Carreira
Nas páginas do seu livro As curvas do tempo: memórias, de 1998, Niemeyer escreveu que a Pampulha significou um despertar na sua carreira, servindo de referência até para o projeto de Brasília, inaugurada em 1960 e fruto da sua parceria com o urbanista Lúcio Costa (1902–1998). Enquanto o mundo ainda valorizava o ângulo reto, a Pampulha explodia em curvas. Com efeito, vai ficar na história uma das frases de Niemeyer que resumem esse pensamento: “Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual”.