“...e Maria deu à luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro da casa.” Assim o evangelho de Lucas descreve o nascimento de Jesus em Belém, na Judeia, num cenário recriado, mais de mil anos depois, em 1223, na Itália, por São Francisco de Assis. Em Minas, desde os tempos coloniais, os presépios são montados nas casas, seguindo o exemplo do santo e moldados na simplicidade da chegada do Menino Jesus ao mundo, embora, a cada dezembro, novos elementos ampliem a gruta com a presença dos pastores e animais ao redor da sagrada família. Quem visita o tradicional Circuito de Presépios de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), se encanta com a criatividade dos moradores, transformados, nesta época, em verdadeiros construtores: há pontes, estradas, represas, praças, edifícios e até um coreto para dar o tom do Natal.
site da instituição. Promovido pelo Iepha desde 2016, em parceria com os municípios, o Circuito de Presépios e Lapinhas tem desta vez 300 locais de visitação (residenciais e comunitários), que ficarão abertos até 6 de janeiro, Dia de Reis. Em Minas Gerais, a tradição dos presépios está presente desde o século 18, com muitos montados nos chamados oratórios-lapinhas, encontrados nas regiões de Santa Luzia e Sabará. Com seu circuito de presépios, Jaboticatubas, também na RMBH, está no guia do Iepha e tem muitas histórias. (Veja quadro.)
Conforme o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), Santa Luzia é a cidade com maior número de presépios no circuito on-line disponibilizado pela instituição na quinta-feira. Em segundo lugar está Medina, no Vale do Jequitinhonha – juntos, os dois municípios oferecem mais de 30. O guia traz os roteiros de visitação e pode ser acessado no O certo mesmo é que a criatividade não tem limites. Foi há 35 anos que o técnico em enfermagem aposentado Marco Antonio de Sousa, de 57, morador da Rua Santana, no Centro Histórico da cidade, se iniciou na arte de montar presépios, pondo em prática o que aprendera com a mãe, Odília, e o irmão, Nilton, ambos falecidos. Desde então, o cenário do nascimento se tornou o alvo das preocupações de Marquinho, apelido de infância, tão logo passa a fogueira que promove todo 26 de julho para homenagear a padroeira da rua. “Fico planejando como vai ser, o que terá de novo, enfim, imaginando”, diz o aposentado, que mantém um livro na varanda já com mais de 100 assinaturas de visitantes neste mês.
Com cerca de 600 peças, o presépio de Marquinho demora até 13 dias para ser montado – “Quando trabalhava, fazia à noite, depois de chegar de BH”, conta o técnico em enfermagem, dono de um currículo que passa pelos hospitais Vera Cruz, Socor e Santa Casa. “Muitos amigos da capital também vêm aqui no Natal”, orgulha-se. Desta vez, ele encomendou ao conterrâneo e marceneiro Antônio Corrêa um coreto de madeira escura para valorizar a praça localizada a cinco palmos da gruta onde Jesus nasceu.
Sem errar a mão, Marquinho idealizou uma ponte sobre as águas que representam “nosso Rio das Velhas” e, então, pediu a um serralheiro para fazer a estrutura numa chapa de metal, para conduzir à estrada para Belém. “Veja que a nascente é nessa gruta de pedras”, mostra uma montanha. “Fico feliz demais em celebrar o nascimento de Jesus, receber a família e os amigos. A época é de alegria, confraternização”, afirma o luziense, que sempre oferece uma fatia de bolo a quem chega, e pendura, no teto da varanda e sobre a divisória entre a sala e a cozinha, uma coleção de Papais Noéis.
Motor
Já no Bairro Alto Bela Vista, José Augusto Moreira e Rosilene Maria Alves Moreira, casados há 41 anos, encontraram na garagem da casa o melhor lugar para fazer o presépio – tanto que, na parede do fundo, providenciaram uma pintura para dar mais cor e forma à criatividade. “Se você chegar na rua e perguntar por Rosilene, ninguém vai saber. Tem que falar Tuchinha”, brinca José Augusto sobre o apelido da mulher. “No período que antecede o Natal, a gente é tudo: engenheiro, arquiteto, carpinteiro e eletricista”, acrescenta o marido, natural do município vizinho de Jaboticatubas e, desde criança, envolvido com a montagem dos presépios. “Aprendi muito com minha avó Cecília”, afirma José Augusto.
Olhando com atenção e curiosidade, o visitante pode ver a cerca de madeira separando os dois níveis da estrutura. Para chegar ao alto, onde fica a manjedoura, tendo ao lado José e Maria, há um pontilhão de madeira. Ao lado, Tuchinha não esconde a alegria por ver o trabalho concluído e, para trazer a natureza para dentro do “espaço sagrado”, trouxe os vasos com as plantas do quintal. “A gente não deixa de se emocionar”, diz Tuchinha, que só vai colocar o Menino Jesus no presépio na noite de 24 para 25 de dezembro, quando a família reza o terço e faz a ceia.
Mas, a pedido dos repórteres do Estado de Minas, Tuchinha trouxe a imagem do Menino Jesus, que fica bem guardada, e posou para uma foto. Nesse momento, o apelido de Tuchinha ficou esquecido. “Aqui somos José, Maria e Jesus. Afinal, o nome dela é Rosilene Maria”, lembrou o marido, para em seguida, mostrar o motor que dá movimento ao rio que brota na gruta de pedra e é também um antigo pilão elétrico. “Ele não tinha lâmpadas, agora tem”, aponta José Augusto as luzes ao fundo.
TRABALHO DE EQUIPE
Bem ao lado do Santuário de Santa Luzia, na Rua do Serro, também no Centro Histórico, os irmãos Francisco Gabrich, de 27, engenheiro mecânico, Márcio José, de 29, arquiteto, e Ana Virgínia, de 32, advogada, formam uma equipe para montar o presépio que pertenceu aos avós, Antônio Fonseca, de 92, e Tereza Gabrich, já falecida, depois herdado pela mãe do trio, Maria Goretti Fonseca Gabrich Freire Ramos, que festeja o Natal reunindo toda a família e, desta vez, estará presente à Missa do Galo na matriz, que, depois de muitos anos, retornará ao horário da meia-noite, por iniciativa do titular da Paróquia Santa Luzia, padre Felipe Lemos de Queirós.
“O Márcio José é o chefe da equipe. Ana Virgínia e eu ficamos na parte operacional”, conta Francisco com bom humor, observando que, por baixo do presépio ocupando duas salas, há toda uma estrutura que demanda solda, carpintaria e outros serviços. “Além do nascimento de Jesus, o presépio envolve a valorização do patrimônio e também da cultura, com elementos de nossa cidade. Assim, tem o grupo de pastorinhas, o congado e outras manifestações populares”, diz o engenheiro mecânico, que, em família, abre as portas da casa aos visitantes.
Há dois anos, os irmãos Gabrich fizeram um oratório para homenagear a sagrada família e, como todos os anos, usam a criatividade para mudar o ambiente, certos de que a imaginação não tem limites.
Conforme as pesquisas, as folias se tornaram uma tradição importante no Brasil e, de forma muito especial, em Minas. No estado, a celebração encontrou terreno fértil, fincando raízes em todas as regiões e se perpetuando ao longo dos séculos. O Iepha-MG mapeou, com a ajuda das prefeituras, mais de 1,8 mil grupos em atividade no estado. Em nota, a direção da instituição informa que “a visitação dos presépios é um dos ritos mais significativos nos giros realizados pelas folias de Minas, reconhecidas como patrimônio cultural em 6 de janeiro de 2017”.
Circuito e jornada
Casas abertas para a beleza, a cultura e a contemplação. Em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, já começou o circuito de visitação dos presépios, organizado pela prefeitura local, via Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Em sua 15ª edição, a iniciativa irá até 6 de janeiro, reunindo, desta vez, 48 residências de vários bairros. Fazendo jus à hospitalidade mineira, os donos e donas das casas abrem as portas para receber as pessoas e mostrar as figuras e bichinhos que passam de geração a geração. Muitos dos elementos do cenário, como os panos cobertos de esmeril e pedrinhas de vidro, são feitos artesanalmente na cidade. Contatos pelo telefone (31) 3641-4791, com Ana Luíza. Este ano, a cidade terá ainda a 2ª Jornada de Santos Reis, em 4 de janeiro, a partir das 9h, numa realização da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia.
Origem
Há sempre uma descoberta nos presépios. A palavra presépio significa estábulo, manjedoura. São Francisco de Assis iniciou a tradição em 1223, nas redondezas de Greccio, Itália, com o objetivo de celebrar o Natal da maneira mais realista possível. Com autorização do papa, ele montou um presépio de palha usando uma imagem do Menino Jesus, um boi e um jumento vivos perto dela. A ideia rapidamente se estendeu por toda a Itália, especialmente nas casas dos nobres e mais pobres. Na capital e no interior de Minas, a tradição de fazer presépios continua cada vez mais viva. As famílias se unem para retirar as figuras das caixas, desdobrar os panos enfeitados com esmeril e caquinhos de vidro, que formam as montanhas, buscar areia e pedras para montar a estrutura e, claro, contar histórias e recordar os antepassados.
Memória criativa
Memória criativa
NA CAPITAL
Na casa da professora Lúcia Garcia, no Bairro Cidade Nova, na Região ordeste, o presépio tem bairros nobres e aglomerados...
EM ITABIRITO
...enquanto a tradição na família Silva Martins Cardoso, na cidade da Região Central, é recriar o cenário do nascimento de Jesus em toda a varanda da casa...
E JABOTICATUBAS
...e, com ajuda dos familiares, o professor de matemática Luiz Filipe onçalves reconstrói histórias e reaviva memórias da sua cidade