O novo ano traz à capital 20 venezuelanas – mulheres que formam o primeiro grupo composto apenas por refugiadas e que serão acolhidas pela Arquidiocese de Belo Horizonte. Elas chegarão ao aeroporto internacional de Confins às 20h30, num voo procedente de Boa Vista (RR). De acordo com a arquidiocese, trata-se do quarto grupo amparado na Casa de Acolhida ao Migrante Boa Viagem, no Santuário Arquidiocesano da Boa Viagem. Os primeiros refugiados venezuelanos desembarcaram em BH em fevereiro de 2019, e, durante o ano passado, mais dois grupos vieram.
Leia Mais
Show de rock destina 75% da renda para refugiados em BHGrupo de 37 refugiados venezuelanos chega a Belo Horizonte Refugiados enfrentam o desafio de reconstruir sua vida no novo ano em BHA saga de família indígena da Venezuela: com 5 crianças, de Manaus às ruas de BHArquidiocese de BH dá a largada para festa do centenárioDe dança a oficina de WhatsApp: espaço em BH tem programação de férias para idososFesta fecha calendário de Natal em BH com atenção especial a idososEm nota, a Arquidiocese de BH informa que, com a Casa do Migrante, espera contribuir para “a construção de um mundo justo e solidário, onde migrantes e refugiados tenham seus direitos garantidos e suas histórias e identidades respeitadas”. No domingo, às 11h, haverá missa de acolhida na Boa Viagem, celebrada pelo reitor do santuário, padre Marcelo Carlos da Silva. “Vamos precisar de doações de material de limpeza, alimentos e produtos para higiene”, diz o padre.
Se para as 20 mulheres BH será um “novo mundo”, com a oportunidade de refazer a vida e pavimentar os caminhos, para conterrâneos pioneiros foi como encontrar um lar. Um exemplo está na trajetória do jovem Rider Daniel Zerpa Romero que, em 1º de maio de 2018, chegava à capital mineira com a confiança de que, daqui, poderia ajudar o pai, viúvo, e as irmãs de 10 e 8 anos, garantindo a dignidade da família na Venezuela e “o pão de cada dia”.
Os meses se passaram e o jovem, agora com 21 anos, residente no Bairro Boa Vista, na Região Leste da capital, viu que o único jeito seria trazer os três para morar com ele. Afinal, o país estava tomado pelos conflitos, com mortos, feridos, combate nas ruas e desesperança no ar. “Muito triste”, lamenta o estudante de teologia na PUC Minas, portador da cédula de identidade de estrangeiro, concedida pelo Brasil, e coordenador da Casa de Acolhida ao Migrante Boa Viagem, vinculada à Arquidiocese de BH e em funcionamento num imóvel do Santuário Arquidiocesano Nossa Senhora da Boa Viagem, na Região Centro-Sul.
Saudade e dor
As notícias sobre a Venezuela, mostradas pela tevê e portais de notícias, sempre fazem os olhos de Daniel, como é chamado em BH, perderem o brilho. Mas acolher as conterrâneas é motivo de alegria. “Estou feliz. Será um novo momento para a Casa”, afirma o jovem, que sempre sente muita saudade dos amigos, da música, do mar. “Estou com o coração lá e os pés firmes em Minas”, revela o jovem de Barinas, no estado de mesmo nome, onde nasceu Hugo Chávez (1954-2013, ex-presidente do país latino-americano e líder da Revolução Bolivariana), e que saiu de casa aos 17 para garantir a sobrevivência.
No jardim e no interior do Santuário da Boa Viagem, Daniel, fluente em português, conta a trajetória fora da terra natal. Não se considera propriamente um refugiado, mas um migrante. Decidido a seguir o caminho religioso, ele foi para a vizinha Colômbia, ingressando, em Bogotá, no seminário dos scalabrinianos (Congregação dos Missionários de São Carlos). “Fiquei três anos, até que veio a crise interior, enquanto a crise econômica aumentava na Venezuela. Como eu poderia ajudar meu pai e minhas irmãs, sem trabalhar? O carisma dos scalabrinianos é a migração, então a saída era mesmo buscar 'uma saída” e enviar dinheiro para casa”.
Opções
Lembrando dos tempos de infância em Barinas e a situação hoje na Venezuela, quando “o salário mínimo dá para comprar um frango e um quilo de café”, Daniel conta que o pai, advogado, era um oficial de alta patente e não conseguia manter a família com tão poucos recursos. Além de tudo, não havia o que comprar, principalmente remédios, e o sistema de saúde estava em frangalhos. “Enquanto eu fazia três refeições por dia, no seminário, os três quase passavam fome. Ficava muito triste, e aí surgiram três opções a seguir: Itália, Peru e Estados Unidos. Foi então que um padre chamado Maurício, mineiro, falou que o melhor seria vir para o Brasil. E citou três motivos: “Um país que acolhe bem os estrangeiros, com uma política migratória flexível para imigrantes e onde se poderia ter uma carteira de trabalho”.
Até chegar a BH, o jovem viajou uma semana. Saiu de Bogotá, atravessou a Venezuela e chegou a Paracaimo, em Roraima, com passaporte, em três dias de ônibus. A rota seguinte, por avião, foi a ida para Manaus (AM) e Belo Horizonte, com passagens pagas por um religioso. Embora tivesse feito contato com a Arquidiocese de BH, Daniel explica que a chegada ao Brasil “tinha que ser por terra”. Primeiro, o venezuelano foi para uma paróquia na capital mineira até se tornar coordenador de setor na Arquidiocese de BH. Sereno, Daniel conta que quer muito ajudar outras pessoas. “Ninguém te impede de sair, mesmo com fronteiras fechadas. Mas é necessário pagar uma taxa de R$ 150, cobrada por alguns militares da Venezuela. Imagina pagar esse valor num país com o salário mínimo tão baixo”, afirma.
Cada notícia que chega da Venezuela parece uma seta lançada no coração do jovem. “Quero, um dia, voltar a viver no meu país, mas não nessas condições. No início, a proposta de Chávez era boa, de ajudar os pobres, mas perdeu o rumo, levou o país à miséria, mesmo com petróleo. Temos que sobreviver, meu pai arranjou trabalho nos serviços gerais de uma escola e agradecemos pelo emprego. Que nunca nos falte o pão, o trabalho e o coração acolhedor dos fiéis”.
Ao falar a última frase, Daniel retoma o brilhos nos olhos. E agradece todo o apoio recebido em BH, em especial o da Igreja Católica, tanto para ele como para 13 venezuelanos que conseguiram emprego na capital, Tiradentes, na Região do Campo das Vertentes, e Carmo do Cajuru, no Centro-Oeste. “Se tenho a lamentar sobre meu país, só tenho a agradecer ao Brasil”. Com a urgência de quem aprendeu a falar português em dois meses, “pela necessidade”, Daniel guarda uma palavra que abre seus caminhos e fala à capital mineira: “Obrigado”.