A receptividade mineira com prosa amigável, pães de queijo e café são traços culturais que nem o rompimento da Barragem 1 da Mina Córrego do Feijão conseguiram eliminar de Brumadinho, tragédia que completa um ano no sábado, dia 25. Mas a avalanche de lama e rejeitos de mais de 10 milhões de metros cúbicos (m3) que resultou na morte de 270 pessoas, sendo 11 desaparecidas, acrescentou à realidade da população atingida caixas e mais caixas de medicamentos para a saúde mental, debilitando radicalmente seu comportamento.
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Na tragédia, a dona de casa perdeu vizinhos, amigos e o genro Peterson Firmino, de 33, que trabalhava na Mina Córrego do Feijão no momento do rompimento. Seu corpo foi encontrado pelos bombeiros e identificado 15 dias depois, podendo ser enterrado em Brumadinho pela família, que nunca mais foi a mesma. “Meu marido, irmão do Peterson, só vive à base de medicamentos. Sem isso ele não dorme, não passa o dia sem chorar. Também tenho crises, fico sem conseguir dormir. No outro dia, cansada, as coisas só pioram. A gente, sem as forças para fazer as coisas do dia, só se lembra daquela desgraça toda e vai se entregando. Misericórdia”, desabafa.
"Custava a parar de chorar"
A dona de casa estava no tanque lavando as roupas da família no momento do rompimento da barragem e dos fundos da casa ouviu o ruído, que compara ao de uma explosão. Das ruas do bairro começou a escutar carros buzinando e gente gritando que a barragem tinha rompido e que era para que todos fugissem. “Larguei tudo do jeito que estava, peguei meu carro e corri para o lugar mais alto que tinha. Passei o dia ali torrando debaixo do sol quente, ligando para Deus e o mundo para saber notícias das pessoas. Rastrearam o celular do meu genro numa mata. Mas quando o acharam, já estava morto”, lembra.
Daí em diante, a rotina de atendimentos médicos, psicológicos e com assistentes sociais não parou mais. “Custava a parar de chorar e conseguir dormir. Aí, sonhava que tinha lama entrando para dentro de casa pelas janelas, debaixo da porta, e eu ficando sem ar. Acordava e não dormia mais. Com o remédio, pelo menos me esqueço disso”, afirma a dona de casa.
De acordo com o secretário municipal de Saúde de Brumadinho, Junio Araújo Alves, o aumento de atendimentos da área de saúde mental tem relação direta com o rompimento da barragem e mudou a rotina do município. “Essa tragédia mexeu com o emocional das pessoas e com seu comportamento, desencadeando agressividade, violência, angústia e uma série de questões que trazem o adoecimento mental”, afirma.
Antes do rompimento, o administrador da pasta afirma que o atendimento era equilibrado com as demandas. “Foi necessário contratar para atender as pessoas no pós-rompimento, que nos trouxe desequilíbrio, pois as pessoas estão doentes”, diz. O número de funcionários da saúde aumentou 160% e o de psicólogos 33% para fazer frente às necessidades crescentes.
Os custos desses encargos deveriam ser arcados pela Vale, depois da assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) intermediado pelo Ministério Público. “Mas essa é uma relação bastante difícil, pois a empresa paga apenas em parcelas, tudo precisa passar pela auditoria interna dela, que está habituada a lidar com empresas privadas e não entende os procedimentos públicos”, afirma o secretário. Segundo Alves, o governo estadual auxiliou apenas com apoio técnico-científico e o federal com o mesmo tipo de ajuda acrescida de recursos financeiros.
O secretário conta que é um atendimento complexo, pois muitos pacientes evitam os serviços de saúde e sofrem sozinhos ou em família. “Criamos um contingente de pessoal especializado para identificar e acolher pacientes de saúde mental dentro da população. Capacitamos o pessoal das unidades básicas de saúde e equipes de saúde da família para que os identifiquem. Há também os serviços de portas abertas para os casos agudos, nos quais as pessoas chegam de forma espontânea ou levadas por familiares quando estão numa crise.
Mais de 6 mil atendimentos
”Três equipes credenciadas no Ministério da Saúde em saúde mental e compostas por psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais foram instituídas para treinar, pelo menos duas vezes por semana, os profissionais das unidades de saúde para esse acolhimento aos pacientes. “Do rompimento da barragem pra cá, fizeram mais de 6 mil atendimentos”, calcula o secretário.
Braços, antebraços, pescoço, costas, barriga e pernas coçam tanto que o alívio só vem quando a comerciante Maria Marques dos Santos, de 64 anos, crava suas unhas na pele e chega a abrir ferimentos nela. Dona de um dos únicos restaurantes ainda em funcionamento no Bairro Córrego do Feijão, em Brumadinho, a mulher achava que as irritações cutâneas se deviam a algo presente na água fornecida na região após o rompimento da barragem B1 da Mineradora Vale.
Contudo, assim como Maria, várias pessoas daquela comunidade e de outras áreas do município diretamente atingidas pelo desastre começaram a apresentar reações adversas devido ao estresse pós-traumático que a experiência trouxe, levando-os a desenvolver depressão e ansiedade. Muitos ali conheciam ou eram parentes dos 270 mortos pela tragédia, sendo que 11 ainda não tiveram seus corpos encontrados ou reconhecidos para receber um funeral adequado.
"Jesus Cristo, é uma coceira braba demais. A gente coça com força para ver se passa e não passa de jeito nenhum. Estamos ficando doentes aqui no Córrego do Feijão. Precisamos que alguém nos ajude e olhe por nós aqui. Já tentei de tudo, tomar banho para ver se passa, mas tem vez que de tanto coçar a pele se enche de bolhas que depois abrem e ficam feridas iguais às de queimaduras", descreve a comerciante Maria Marques. Ela conta que devido a essa condição, precisa ir frequentemente ao posto de saúde, onde, além de medicamentos para a coceira, passou a fazer acompanhamento com psicólogos do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS).
Sintomas decorrentes da tragédia
Depressão e ansiedade passaram a fazer parte de sua vida desde que a barragem B1 da Mina Córrego do Feijão se rompeu, há quase um ano. Mesmo seu estabelecimento tendo ficado sempre cheio durante a época das buscas. “Assim que a Vale me indenizar, vou embora para minha cidade, Nanuque (Vale do Rio Mucuri, a 600 quilômetros de Belo Horizonte). Brumadinho para mim acabou. Tenho 64 anos, não quero começar a vida toda de novo aqui”, desabafou.
Para conseguir dormir e tentar controlar os sintomas que tornaram sua pele tão irritada, a comerciante passou a utilizar medicação psiquiátrica forte. Atualmente, ela toma Alprazolam, um medicamento utilizado frequentemente no tratamento de ansiedade e síndrome do pânico, e Sertralina, que é um antidepressivo. “Foram 20 anos lutando aqui em Brumadinho, no Córrego do Feijão, agora chegou a hora de desistir e ir embora. Buscar sossego de novo”, lamentou.
De acordo com o secretário municipal de Saúde de Brumadinho, Junio Araújo Alves, devido aos problemas psiquiátricos, muitas pessoas desenvolvem outros sintomas, como é o caso de Maria Marques. “Questões clínicas acabam sendo potencializadas também. Cefaleias (dores de cabeça), infecções respiratórias agudas, cistites (infecções da bexiga), erupções, alergias e reações autoimunes aumentam devido a uma baixa de imunidade associada a essa situação estressante em que as pessoas se encontram”, afirma o secretário.
“Por não procurar atendimento, muitas pessoas acabam em sofrimento e se automedicando para sintomas que deveriam ser tratados com especialistas das nossas equipes de saúde mental”, afirma o secretário de Saúde de Brumadinho. Uma das pessoas que se queixam de problemas para dormir e de estar se sentindo atormentada pelas memórias do desastre é o encarregado de manutenção de vagões de trens João Ribeiro da Silva, de 56, que trabalhava prestando serviço para a Vale.
Desde o desastre, está desempregado. “Podia ter sido eu debaixo dessa lama, porque meu turno acabou na quinta-feira, às 9h30, e o acidente foi na sexta-feira. Depois de ter passado os dias, de ter ajudado a socorrer gente de dentro da lama, isso veio em minha cabeça. Não paro de pensar nisso”, afirma o desempregado.
De acordo com ele, foi no posto de saúde do Córrego do Feijão que os funcionários perceberam que o desempregado estava abalado e que precisava procurar ajuda profissional na saúde mental. “Me disseram (no posto de saúde) que era para eu procurar o pessoal psicólogo e assistentes sociais, mas até hoje não fui. Não procurei ninguém ainda, mas sempre penso nisso. Não paro de pensar nisso”, disse João.
Solidariedade para se reerguer
Além da Prefeitura de Brumadinho, várias instituições, organizações não governamentais e igrejas fazem trabalhos de auxílio à população marcada pelo rompimento. A Arquidiocese de Belo Horizonte, por exemplo, atuou no atendimento emergencial com acolhida espiritual à população em velórios, nos lares, dedicação permanente aos familiares por meio da escuta, orientação, conforto e incentivo; doação de cestas básicas, roupa, material escolar, itens de higiene. Nos três primeiros meses após a tragédia foram realizados 810 atendimentos.Logo a seguir, a Arquidiocese, a partir da PUC Minas, com a sua extensão universitária, iniciou ações dedicadas a Brumadinho, planejadas a partir dos seguintes eixos: educação, gestão, assessoria jurídico-contábil, amparo psicossocial e sociocomunitário, saúde humana, saúde animal e socioambiental. Números totais dessas iniciativas, realizadas a partir do segundo semestre de 2019, tiveram 2.300 beneficiários diretos e 12.820 indiretos.
Integração com a sociedade
Entre as ações, destacam-se empreendedorismo como estratégia de desenvolvimento em Brumadinho, acolhimento e orientação jurídica, em parceria com a Defensoria Pública da União, previdência rural, projeto integrado de educação em saúde, oficinas e encontros psicossociais, serviço de atendimento jurídico itinerante, orçamento familiar e gestão financeira, oficinas de comunicação para jovens, assessoria jurídico-contábil, reciclagem solidária e inclusiva.A Vale informou, por e-mail, que 600 famílias estão sendo acompanhadas por profissionais do Programa Referência da Família, como forma de garantir assistência às pessoas diretamente atingidas pelo rompimento. “Como se trata de um luto coletivo, os esforços voltados à saúde emocional devem envolver não só um trabalho direcionado aos familiares, mas à população como um todo. Por isso, a empresa assinou acordo de cooperação com a prefeitura para repasses que já totalizam R$ 32 milhões, destinados, exclusivamente, à ampliação da assistência de saúde e psicossocial no município. Em 2019, foram realizados mais de 18 mil atendimentos médicos e acolhimentos psicossociais à população.”