A velha caminhonete Chevrolet D-20 vinho chega a percorrer oito vezes por dia a estrada de seis quilômetros entre a propriedade do agricultor Reginaldo José Rocha Cota, de 47 anos, e a do vizinho. Faça sol ou faça chuva, atravessando a poeira ou cortando a lama, o produtor rural precisa fazer essas viagens ou sua família e seus 40 porcos ficarão sem água para beber.
Reginaldo ficou sem as hortaliças que plantava em seis hectares cultivados e a água do poço que usava cotidianamente foi considerada imprópria por ter risco de ser contaminada pela lama e rejeitos. “Não tenho como plantar, sem água para irrigar as hortas. Hoje saio e tenho de fazer quatro viagens e descarregar a água de balde em balde. Poderia mexer com o terreno, tratando da criação, negociando a venda de tudo, mas minha correria é só para sobreviver”, afirma, demonstrando aflição ao coçar a cabeça e esfregar as mãos. Uma situação semelhante à de outros agricultores da região que perderam quase 40 hectares de terras cultiváveis e acesso a água subterrânea e superficial.
Apesar do sofrimento diário e do prejuízo, a família de Reginaldo – a mulher e duas filhas, uma de 9 anos e outra recém-nascida – não é considerada atingida e não receberá indenizações se a Justiça não se convencer do contrário. O fornecimento de água pela mineradora Vale, dona da barragem rompida, caiu para apenas o básico do consumo humano, segundo ele, e os caminhões que enchiam sua cacimba de fibra pararam de o fazer há meses.
Nessa situação desde o início da tragédia, a velha D-20 finalmente vai abandonar a extenuante rotina. Mas não será por uma melhora nas condições da fazenda. “Para mim, não dá mais não. Já até vendi as minhas terras para o vizinho aqui de baixo. Vou embora para Belo Vale, tentar recomeçar longe dessa tristeza de barragem”, lamenta.
Agricultor usa água imprópria
O drama de Reginaldo se repete nas propriedades rurais entre as comunidades de Parque da Cachoeira e Tejuco, em Brumadinho. O vizinho dele, Willian de Paula dos Anjos, de 45 anos, também quer se mudar, mas para Betim. Diz estar farto de ter de sujeitar sua mulher e as filhas de 8 anos e 4 anos à falta de luz e de água limpa, uma vez que faz uso do mesmo poço que usava, apesar da proibição das autoridades ambientais e sanitárias. “O gerador de eletricidade que a Vale nos forneceu quebra direto e fica dias parado, deixando a gente no escuro. Antes, pegava água do córrego numa bomba, mas a lama levou tudo embora”, conta.
"Virei prisioneiro da minha própria casa"
Depois de trabalhar por 35 anos como funcionário público federal, o aposentado Edimar Raimundo de Amorim, de 72 anos, se mudou para uma fazenda em Brumadinho. “Vim para cá e aqui construí uma última morada. Daqui, só sairia para o Cemitério da Colina”, conta. Ao redor de sua casa, vários brinquedos de parquinho coloridos foram colocados no jardim para que os cinco netos e filhos pudessem se divertir.
Contudo, o rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão virou do avesso os planos do aposentado ao destruir a rede de fornecimento de energia que abastecia a propriedade, bem como os açudes e poços, que foram interditados por suspeita de estarem contaminados. “Meus netos não vêm mais aqui. Não saio, porque, se sair o caseiro vai embora e ninguém quer mais trabalhar aqui. Virei um prisioneiro da minha própria casa e a Vale informou que não sou atingido. Estou muito chateado. Com insônia. Acordo às 2h e fico até 4h, 5h sem dormir”, lamenta Edimar.
O sossego pretendido se foi desde o rompimento, em 25 de janeiro de 2019. A eletricidade passou a ser fornecida por geradores a diesel que impedem o aposentado de ter a tranquilidade que almejava. “Se eu não sou atingido, então podem tirar agora esse gerador e me dar energia. Não consigo ficar com essa máquina ligada por mais de 4 horas seguidas. Não dá para conversar, nem para ouvir meus pensamentos. Por isso, desligo, mas deixo meu caseiro sem energia na casa dele. Ou seja, uma situação sem solução”, desabafa.
O fornecimento de água também não tem sido regular, segundo Edimar. “Antes era um caminhão com 200 fardos de água. Foi reduzindo e agora são 10 pra mim e 10 para o caseiro. Meus cães têm acesso a água contaminada e estão morrendo. Antes, meus cães morriam em média com 14 anos. Agora, estão morrendo com anemia e problemas hepáticos com menos de 5 anos”, conta.
O que diz e mineradora Vale
A Vale informou por e-mail que oferece água potável e mineral para famílias de 16 municípios que estão temporariamente impossibilitadas de captar água do Rio Paraopeba. “O objetivo é assistir toda população que não é atendida pela Copasa e que captava diretamente no Rio Paraopeba, além de usuários de poços artesianos e cisternas que residem a até 100 metros da margem do rio, conforme critérios definidos pelo Igam (Instituto Mineiro de Gestão de Água). Tal critério não é atendido nos casos dos três produtores citados”.
A Vale informou que conta com um programa de Apoio Técnico Agropecuário com o intuito de restabelecer e potencializar as atividades produtivas de propriedades rurais nos municípios impactados pelo rompimento. “Para isso, a empresa conta com uma equipe de agrônomos e veterinários dedicados a dar a assistência necessária para o desenvolvimento das culturas destas propriedades.
Como medida emergencial, a empresa provê água para consumo humano, irrigação e dessendentação animal, além de toda a infraestrutura necessária para o abastecimento como caixas d´água, tubulações e bombas hidráulicas. Também são fornecidas rações, construção de cercas e bebedouros para impedir o contato dos animais com a água do rio Paraopeba”, informou por e-mail.
Até 14 de janeiro de 2020, segundo a mineradora, mais de 560 milhões de litros de água já haviam sido fornecidos pela Vale para as propriedades rurais. “Além da estrutura para abastecimento emergencial, a Vale está trabalhando em soluções definitivas para a região, com a construção de cerca de 100 poços artesianos para propriedades que estão recebendo água via caminhão-pipa. Cerca de 10% desse total já foram entregues e a previsão é que as obras estejam concluídas até o final de 2020”.