O nome Córrego do Feijão entrou para a história em 25 de janeiro de 2019 como a pior tragédia minerária das últimas três décadas, a segunda mais grave em estragos ambientais e socioeconômicos após Mariana (2015). Mas, ao contrário da Mina Córrego do Feijão, onde estava instalada a Barragem B1, da Vale, em Brumadinho, que se rompeu e soterrou 270 pessoas (11 ainda desaparecidas), e do bairro de mesmo nome, que foi a primeira comunidade atingida pela lama e os rejeitos, o manancial que batiza todas as estruturas ainda surge límpido das entranhas da terra, a apenas dois dias de essa tragédia completar um ano, no próximo sábado. Para mostrar esse símbolo que resiste, como a comunidade mutilada pela dor e a natureza dilacerada sob rejeitos, a reportagem do Estado de Minas foi até o berço do singelo riacho do interior mineiro para contar a sua história.
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Somente dois funcionários dos 11 que chegaram a morar e a trabalhar na Fazenda Índia, mantinham as coisas minimamente em ordem. Vagner de Jesus Silva, o Baiano, de 42 anos, trabalha lá há três anos e, ao lado do jovem Lucas Pereira dos Santos, de 25, que veio de BH, roçam o mato, mantêm as poucas criações alimentadas, fazem reparos e manutenções. “Nosso principal comprador era um frigorífico em Betim. Mas os clientes sumiram. Depois que a barragem se rompeu, parou de ter clientes. Não sei se têm medo da água que os porcos bebem ou de os fregueses não quererem nada que venha do Córrego do Feijão”, afirma Vagner.
A decadência, segundo eles, é a mesma que atingiu o Bairro Córrego do Feijão. “A comunidade também acabou. Não tem mais supermercado, mercearia fechou, gás, tudo precisa ser comprado em Brumadinho. Aqui ainda tem algum gado, mas a partir deste mês já vai vender. Parece que a Vale deve comprar a fazenda, foi o que eu ouvi falar”, disse Lucas. “Não sei o que vai ser da gente. Estou esperando para ver se o patrão vai me mandar embora, se vou ficar desempregado. Perdi um amigo na pousada, o Macuco, e uma colega que era terceirizada na cozinha do restaurante da mina da Vale. Tudo isso daqui foi muito triste e a gente sente essa tristeza”, desabafa Vagner, enquanto Lucas concorda em colocar uma bota e, mesmo de bermudas, enfrentar o matagal e a fama de cobras venenosas para chegar até a nascente que dá nome a essa história.
Presente desolador
Depois da nascente, o Córrego do Feijão percorre dois quilômetros até o bairro que leva seu nome e outros dois até cair no Ribeirão Ferro-Carvão, soterrado pelos rejeitos. Antes disso, percorre a Fazenda Índia, hoje abandonada, com galpões fechados, ainda com rodas de tratores e peças empilhadas ao lado dos veículos. São vários setores utilizados na criação dos porcos que Vagner e outro funcionário, Lucas, tentam manter limpos, com as paredes caiadas e capinados. Os mais confortáveis e estruturados são as maternidades, onde até 400 porcas ficavam em baias individuais, com anteparos metálicos para suspender os animais e propiciar que os leitões chegassem até as tetas para mamar. “Toda semana chegavam mais 10 matronas (porcas) para procriar”, conta Vagner.
Dois grandes cômodos funcionavam como creches para os leitões. São espaços bem-arejados, iluminados e com pisos emborrachados para receber os filhotes e permitir uma higienização para um índice maior de sobrevivência a doenças. Dois galpões compridos são usados para a reprodução das porcas e para separar aquelas já prenhes das em período fértil. Os últimos cômodos são a engorda e o encaminhamento para o abate, que não se dava na fazenda, mas dentro dos caminhões especializados dos parceiros que compravam os porcos vivos. Dois porcos vendidos ainda estão nas baias aguardando ser levados.
A água usada para os porcos beberem e para o consumo da propriedade vem do Córrego do Feijão. Um sistema de recolhimento de dejetos concentra todos os excrementos num bosteiro. A parte sólida é retirada por caminhões apropriados para se tornar fertilizante e adubo, enquanto a água é escoada e passa por duas lagoas antes de ser encaminhada para um reservatório próprio, não tendo contato com a água do Córrego do Feijão.
Abaixo das pocilgas, o córrego desce claro. Bem no leito, perto de um pequeno barramento de pedras, uma conexão tinha sido instalada para remover a água do córrego para as instalações abandonadas. Agora, a água que chega na caixa já é suficiente. Peixes pequenos ainda nadam pelas águas e até algumas tilápias, que escaparam de lagos próximos quando as chuvas inundaram lagos vizinhos. Logo ali uma cerca divide a fazenda das mineradoras.
Obstáculos pelo caminho
O caminho para a nascente do Córrego do Feijão segue deixando a fazenda mata adentro, por trás de três moradias tomadas pelo matagal e de onde se identifica pela folhagem e porte diferentes alguns pés de manga e de goiaba que deviam fazer parte de um pomar. Depois do mato, um remanescente de pasto alto de capim braqueária numa área descampada atrapalha o avanço. Quem não é de lá não vê sinal de trilha. Mas Lucas, que precisa da água para abastecer a propriedade, mostra o caminho à frente, até a borda de uma mata protegida pelas macaúbas do cerrado mineiro. Além desse obstáculo, a floresta é densa e tomba sobre a trilha apagada, querendo fechá-la. O rapaz se esgueira, com facilidade se desvencilha dos obstáculos até a chegada a um ponto onde o ruído de queda d'água alerta para a proximidade da nascente.
O Córrego do Feijão brota de uma surgência entre os capins, estruturada por pedras e sacos de areia, mas límpida e corrente, um alívio para a caminhada árdua sob o sol escaldante. Lucas bebe com vontade a água, que é a mesma que sempre consome. “É mesmo difícil imaginar que essa água que desce daqui tão limpa ficou debaixo da lama da mineradora. Aqui, ela dá o nome da comunidade, mas quase ninguém mais conhece a nascente, porque todos estão indo embora”, desabafa.