Jornal Estado de Minas

Lama e Lágrimas

Moradores atingidos em Minas temem, além da chuva, os saques noturnos

José Teixeira e a família têm passado as noites praticamente em branco. Lampião-lanterna é um aliado do casal (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press )
Raul Soares – Quando os faróis de caminhões e tratores se apagam e o ruído dos motores dos equipamentos que abrem caminho na lama se silenciam, o medo toma conta dos imóveis onde se abrigam os atingidos e desalojados pela cheia do Rio Matipó, em Raul Soares.


No escuro, as famílias sobreviventes de um dos municípios mais castigados pelas tempestades que afligem a Zona da Mata mineira perdem o sono por causa do rio que permanece cheio, das nuvens pesadas de chuva e dos rumores de que ladrões estão saqueando as moradias de 40 famílias que tiveram de deixar suas casas. Como vários postes caíram derrubados pela força das águas, as noites são escuras e os ruídos mais presentes são o das corredeiras do rio, dos cães vadios e dos trovões.

Moradores da região perceberam o surgimento de peixes mortos depois das chuvas intensas dos últimos dias no estado (foto: Lelis Barreiros/Divulgação)


Da janela da casa de uma vizinha que a acolheu, a aposentada Filomena Alves de Assis, de 61 anos, passa as noites em vigília observando a casa onde mora sozinha, no Bairro Bom Jesus, que foi arrasado pelas cheias entre sexta-feira e domingo. A casa não tem mais condições de ser habitada depois que um rio de lama a invadiu. “Como diz o outro: a nossa casa e a rua virou parte do rio. Só com barcos ou nadando é que se conseguia sair daqui e ajudar aos outros”, afirma. Dentro do imóvel ainda estão os pertences da aposentada, muitos deles arruinados, mas que são tudo que ela tem. “Tenho medo de que alguém entre na casa, porque a água estourou a porta e ela ficou só encostada. Estão dizendo que tem gente ruim entrando (nas casas atingidas) e roubando. Então, eu fico vigiando e rezo para Deus ajudar”, disse.

Filomena mesmo, no entanto, admite que poucos pertences terão salvamento. “Ficou para trás o meu colchão, uma porção de coisas pegou mal cheiro. Tem de lavar, mas está faltando água no bairro desde a enchente. Hoje (ontem), acabei de tirar a cama, o guarda-roupa e a cômoda para uma parte mais seca. Mas está tudo ensopado ainda. Era muita água. Tava dando para passar de barco”, conta.


Mesmo a mais fina garoa e os reflexos de raios nas nuvens conseguem tirar o sossego das noites da família do vendedor José Teixeira Frade, de 54. A casa dele fica na beira de um barranco onde a ponte que liga os dois extremos de Raul Soares foi levada pela água, assim como a casa do vizinho. “Esse barranco vai só se abrindo com a força da água. Levou a ponte e a casa do meu vizinho num estouro só. Tem três noites que não durmo com medo de que o Rio Matipó engula também minha casa”, afirma o vendedor.

Na casa onde ele mora com a mulher, a manicure Hermelinda Teixeira Frade, de 49, e uma filha de 27 anos, os mantimentos ficaram empilhados sobre a mesa da cozinha, geladeira e fogão sobre mesas e vários móveis, como estantes, sofá e armários acabaram sendo perdidos ao absorver a água enlameada. “Vimos a água chegando era umas 10h. Passou por cima da ponte e levou tudo depois de três estouros. Tenho um pânico da minha casa cair, mas não podemos sair porque tem gente entrando e levando as coisas da gente”, conta Hermelinda.

A manicure perdeu para a lama, inclusive, o salão onde fazia a unha das clientes e parte do material de pintura e assepcia. Tanta tensão a levou para o hospital. “Passei mal demais na noite de domingo. Minha pressão foi a 20. Fiquei lá no hospital até ser medicada e a pressão baixar. Mas já está alta de novo, mesmo com os remédios que a doutoura me receitou. Ela disse que é emocional, que preciso de ter descanso. Mas não dá para dormir. Fico escutando a força do rio batendo nos pedaços da ponte como se fosse as ondas de uma praia. É um terror saber que a sua casa pode ser levada pelo rio ou desabar”, desabafa.


Para não ter de deixar a casa com tudo o que têm, o lanterneiro Carlos José Tanz, de 38, e a mãe dele, Dalva Lúcia Raspante Tanz, de 73, levaram o que conseguiram salvar para a garagem da frente da residência onde funcionava a oficina dele. Cama de casal, armários, geladeira e sofás constituiram uma nova casa improvisada completamente aberta para a rua. Assim, dormem praticamente expostos para a rua, sendo que muitos que passam até param para assistir à programação que passa na sua televisão. Uma forma de conseguir um pouco mais de privacidade foi estacionar o carro, um Fiat Palio, na porta para bloquear o máximo possível da visão. “A gente preocupa muito quando começa a chover. A casa não ficou comprometida, o rio subiu e desceu, mas deixou tudo coberto de lama. A gente não queria ir para a casa de outras pessoa e preferimos trazer tudo para a oficina”, disse o lanterneiro.

População do Rio Doce se queixa de rejeito de minério da Samarco


Rio Doce – O alento que a retenção de 10 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro que a Barragem de Candonga trouxe para o Rio Doce vinha sendo comemorado desde 2015, ano em que a Barragem do Fundão, da mineradora Samarco, se rompeu em Mariana. Contudo, as falhas que impediram que o reservatório tivesse esse rejeito dragado até 2018 podem estar agora impactando por causa das chuvas intensas em áreas que nunca tiveram contato com o material, como Governador Valadares. A cidade do Leste do estado, de 245 mil habitantes, teve seu fornecimento de água suspenso quando o rejeito ingressou no Rio Doce, há quatro anos. Agora que as chuvas revolveram o rio e o fizeram invadir vários bairros, deixando 15 mil desalojados, os rejeitos estão sendo depositados nos terrenos e casas dos atingidos. A suspeita de vários órgãos é que se trate de material que veio de Candonga e que já deveria ter sido dragado em 2018 pela Fundação Renova.
Por causa dos rejeitos, o Ministério Público de Minas Gerais determinou que a Fundação Renova, responsável pela recuperação do Rio Doce, forneça informações, com urgência, sobre a situação e também sobre o plano emergencial para período chuvoso.


O presidente da Associação dos Pescadores de Conselheiro Pena e Região, Lelis Barreiros, diz que a quantidade de rejeitos que tem descido do barramento operado pela Usina Hidrelétrica Risoleta Neves seria muito maior do que antes. “O rio já morreu uma vez e está morrendo de novo”, considera, acrescentando que as barreiras metálicas instaladas pela Fundação Renova para reter o avanço do rejeito não estão sendo capazes de segurar o material no reservatório: “Esse sistema de três barragens tinha de deixar a água passar por cima e o rejeito ficar. Mas a chuva está tão forte que está saindo tudo arrebentando e voltando para o Rio Doce”.

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Governador Valadares, Elias Souto, conta que sua casa na Ilha dos Araújos foi atingida, ficando encoberta por uma camada de 10 centímetros de material escuro semelhante a rejeitos de minério de ferro. “Nas últimas quatro enchentes, o rio tinha outro tipo de lama. Agora, veio essa escura, com aparência mesmo de rejeitos como os de Mariana e de Brumadinho. Estamos sendo atingidos novamente e de forma pior, pois esses materiais não tinham entrado em contato conosco. Quando secar, teremos poeira de rejeitos contaminando a cidade. Sem falar na vida aquática que vai ser novamente prejudicada se se tratar mesmo de rejeitos”, disse.

O biólogo Matteus Carvalho alerta que é preciso medir a quantidade de rejeitos que se movimentou em Candonga para saber o tamanho do prejuízo, uma vez que os 10 milhões de metros cúbicos que estão no lago correspondem ao mesmo volume liberado pela tragédia de Brumadinho: “Essa movimentação dos rejeitos piora a qualidade dela. Por outro lado, por causa do volume das chuvas, pode ter havido uma diluição dos contaminantes (quando comparado com a situação original), o que não significa que as águas estejam próprias para o consumo ou que podem passar por tratamentos convencionais. Teriam que ser feitos testes para avaliar isso”.


Segundo o Matteus Carvalho, uma pergunta de difícil resposta e que demandaria análise de especialistas é se as enchentes foram maiores por causa do rejeito de Fundão assoreando os rios:“De toda forma, é um cenário contínuo de degradação, amplificado pelo desastre ocorrido há mais de quatro anos”.

AVALIAÇÃO DA SEMAD De acordo com a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), não foi feita a avaliação da movimentação dos rejeitos sedimentados no reservatório da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves. O órgão vai levantar, junto à Fundação Renova, responsável pela recuperação do curso d'água, a quantidade de rejeitos mobilizados com as chuvas. “Após o diagnóstico, serão traçadas as ações necessárias à recuperação dos possíveis danos e ao controle dos impactos na fonte geradora”, diz a nota.

A Semad afirma ser “prematuro” considerar que a fonte da turbidez do rio foi o depósito de rejeitos. “Em períodos chuvosos, o aumento da turbidez da água e da quantidade de sólidos em suspensão é comum nos rios da Bacia do Rio Doce”, diz, destacando que se a contaminação do rio pelo rejeitos depositados na hidrelétrica forem confirmados, haverá a responsabilização da Fundação Renova. Nesse caso, não há responsabilidade do Consórcio Candonga ou da UHE Risoleta Neves, conforme a secretaria.

A Semad ainda informou que o processo de licenciamento ambiental para a retirada dos sedimentos está em curso e a previsão é que o desassoreamento do reservatório comece em 1º de junho, mas que ações emergenciais para estabilizar os rejeitos foram realizadas. A Fundação Renova não deu resposta ao Estado de Minas até a publicação desta reportagem. O EM entrou em contato com a Usina, sem sucesso.