Jornal Estado de Minas

e agora, bh?

Após chuva, mãos à obra

“A colheita é comum, mas o capinar é sozinho”, ensina o Grande sertão: veredas. O rastro de destruição deixado na capital mineira pelo temporal da noite de terça (28) fez com que moradores de duas das áreas mais atingidas invertessem o ditado de João Guimarães Rosa. No São Bento e em Lourdes, ambos localizados na Região Centro-Sul, que teve o maior volume de precipitação entre as 19h e as 22h10 de anteontem (175,6mm), a quarta-feira foi de mutirão para reordenar residências e estabelecimentos comerciais. 
Quem mora, trabalha ou tem empreendimentos nesses bairros se juntou ao pessoal da Defesa Civil, do Corpo de Bombeiros e do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) para limpar a sujeira provocada pela enxurrada que invadiu prédios residenciais, escolas e restaurantes. Foi hora também de contar os prejuízos. O ar era de perplexidade e a afirmação de que “nunca se viu uma chuva como essas em Belo Horizonte”, de tão repetida, parecia uma ladainha. Mas o ânimo dos cidadãos era de recuperar e reconstruir o que se perdeu com as águas.




Moradores, comerciantes e dezenas de funcionários da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) trabalharam ontem no entorno da Avenida Prudente de Morais, no Bairro Cidade Jardim, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, para remover o barro e o lixo provocados pelo temporal da noite de terça-feira (28). Sobram: lama, carros destruídos, árvores derrubadas, prédios inundados e buracos nas vias da localidade. A Avenida Prudente de Morais entre Rua Iraí e Rua Deputado Álvaro Sales foi interditada, complicando o trânsito na região. O asfalto despregou, deixando o local irreconhecível.
 
O engenheiro Alan Zerbini, de 36 anos, mora há dois anos no trecho interditado. “Eu tive três minutos para tirar o carro da parte baixa”, contou ele. Zerbini diz que nunca presenciou uma chuva tão forte e relata que a água invadiu a portaria de seu prédio e também a garagem. “Tentamos tirar as motos, os telefones, as coisas de valor da portaria. Mas perdemos muito. Ainda estamos contabilizando os prejuízos.” O engenheiro avalia que os danos não poderiam ser evitados, dado o volume de água que caiu sobre a cidade. “A barragem não aguentou. Ficamos preocupados com a previsão de chuva para os próximos dias”, disse.
 
A Praça República do Líbano, no Bairro São Bento, também na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, foi tomada pela lama. Na Rua Michael Jeha, a situação era crítica. Dezenas de carros foram rebocados na manhã de ontem. Ainda assustados, diversos moradores passaram a manhã contabilizando prejuízos. Um deles é o médico Fernando Vasconcelos, de 70, que perdeu o carro durante a chuva e aguarda o reboque para remover o que sobrou do veículo.


 
Vasconcelos estava no número 50 da rua, onde funciona a escola de línguas Greenwich, que pertence à sua mulher. No momento em que a chuva começou, ele fazia uma aula de espanhol. O médico conta que quatro computadores foram perdidos, além de muito material didático, como apostilas e livros. "A água tomou o primeiro andar. Precisamos subir. Tentei acalmar todos os alunos, eles ficaram nervosos", diz.

AULAS A dentista Eucir Batista, de 70, que também estava na escola de línguas, foi outra que perdeu o carro. “Moro perto e eu estava na aula de inglês. A grande maioria que perdeu o carro estava na aula ou na academia ao lado. Começou a chover muito. Uma funcionária avisou que a água estava subindo, mas estava alta e não tive coragem de entrar no carro. Que bom que eu não entrei. Susto! Ficamos presos por três horas”, disse. Um ônibus da linha 8103 ficou ilhado na via. Testemunhas contaram que havia muitos passageiros. Oficiais do Corpo de Bombeiros chegaram ao local.
 
Morador do São Bento há 35 anos, Urquiza Antônio de Faria Alvim, de 80, diz que nunca presenciou uma chuva tão devastadora. "A última chuva muito forte (de que tive notícia) foi há cinco anos. Mas a construção da barragem segurou o temporal. Estou impressionado. A água atingiu dois metros de altura", relatou. A enxurrada chegou a invadir a garagem da casa dele. Na manhã de ontem, Urquiza e sua mulher fizeram a limpeza da residência. "Ainda não abri os dois carros que estavam estacionados na garagem", disse.


 
O comércio localizado na Avenida Cônsul Antônio Cadar foi muito prejudicado. Funcionários de restaurantes e lanchonetes limpavam pela manhã o barro que invadiu as lojas. O Center São Bento também foi alagado e seus corredores ficaram parecendo leitos de um córrego. Na via, uma cratera se abriu, o que exibe atenção redobrada dos motoristas.
 
O restaurante Verdinho, uma das atrações da região, foi invadido pela água da chuva. “A água entrou em tudo. Mas, por sorte, conseguimos tirar algumas coisas antes de a chuva se intensificar. Mas perdemos mesas, cadeiras. Todas levadas pelo rio que se formou. Nunca vi algo igual”, disse a gerente do restaurante, Rose de Fátima. Ela ainda contou que a cratera se abriu na semana passada, mas o buraco ficou ainda maior depois da tempestade de terça. A pizzaria Pizzarella também foi atingida. Mas todo o comércio se esforçou para abrir ainda ontem, numa tentativa de atenuar os prejuízos.


Restaurantes em Lourdes recuperam mobiliário na rua


Mariana Peixoto

São poucos quarteirões, mas eles concentram boa parte dos melhores restaurantes de BH. Ontem, em Lourdes, após o temporal que destruiu parte de uma das áreas mais nobres da cidade, o cenário era de devastação. Mas era hora de recomeçar.


 
Nas ruas Marília de Dirceu, Curitiba e Bárbara Heliodora, no entorno da Praça Marília de Dirceu, o coração do bairro da região Centro-Sul, concentrava-se uma grande força de trabalho. Donos de bares e restaurantes, seus funcionários, pessoal do Corpo de Bombeiros, Defesa Civil e Gasmig trabalhavam desde cedo para tentar tirar água, lama, reencontrar móveis, em meio às crateras formadas no asfalto.
 
O clima geral era de perplexidade – mas sem deixar a peteca cair. Léo Paixão, um dos chefs mais conhecidos de Minas, não estava em seu restaurante Glouton na hora do temporal, mas em Santa Tereza, no bar Nicolau, outro empreendimento seu. Ontem , o chef foi cedo para o restaurante que ocupa o número 59 da Rua Bárbara Heliodora.
 
Em comparação às demais casas da área, o Glouton sofreu pouco. Como fica num trecho mais alto da rua, a água não chegou a entrar no salão – e o restaurante seguiu funcionando durante a tempestade. Mesas e cadeiras de ferro que ficavam na área externa foram levadas pela força da água, assim como carros de frequentadores do restaurante. Boa parte desse mobiliário foi recuperado ontem. 


 
Enquanto inspecionava o restaurante, Paixão estava decidido a abrir o Glouton à noite e ficar por lá até o último cliente. “O importante é mostrar resistência e dar força para nossos colegas.” Essa também foi a atitude de Érica Lamounier, uma das proprietárias do Kei, que funciona há 12 anos no número 54 da Bárbara Heliodora.
 
O parklet do Kei foi levado pelas águas. A parte externa, onde fica a varanda, também. Já na hora do almoço funcionários recompunham o local – as tábuas foram sendo recuperadas aos poucos, no meio da rua. Como a parte interna não foi afetada, Érica previu que poderia abrir a casa normalmente, a partir das 18h.
 
Ricardo Koctus, baixista da banda Pato Fu, levou há sete meses a Koctus Pizza para o primeiro quarteirão da Rua Marília de Dirceu, no número 159. Como a pizzaria não abre às terças, Koctus não viu de perto os efeitos do temporal na Praça.


 
Ontem pela manhã, mal teve tempo para ver o estrago. Já que seu estabelecimento fica em frente ao ponto da Gasmig, que fazia reparos na tubulação, a pedido da Defesa Civil ele teve que abandonar o local. A pizzaria ficou com as portas  fechadas, sem que Koctus tivesse a chance de contabilizar as perdas de bebidas e alimentos. “Nesta semana não devo conseguir funcionar”, disse ele, acrescentando que qualquer volume maior de água naquela região já é um problema. “Mas, do jeito que foi, foi uma catástrofe.”
 
O vídeo dos frequentadores do Olga Nur assistindo à água dominar tanto a rua quanto o próprio restaurante na noite de terça foi intensamente compartilhado em redes sociais. Ontem, o cenário no Olga Nur era caótico. Com lama por toda parte, funcionários recolhiam móveis e buscavam limpar o estabelecimento, que fica na esquina das ruas Curitiba e Tomás Gonzaga. À sua frente está o bar Tizé, outro que sofreu muito com o temporal. As duas casas são de Matheus Mourthé, que, muito impactado, não quis dar entrevista.
 
Naquela região, ele também é proprietário do bar Tinto, também na Rua Tomás Gonzaga, mas que sofreu menos com a chuva; e do sacolão Quintal da Casa, na Rua São Paulo. Este estava funcionando normalmente na manhã de ontem.


 
Houve estabelecimentos que sofreram menos com a chuva, mas que não abriram ontem porque o acesso à região estava muito complicado. Proprietário da Pizzaria Marília, Gilson Júdice não sabe se vai conseguir abrir hoje. 
 
O L'Entrecôte de Paris tampouco abriu as portas ontem – seus funcionários estavam limpando o local para voltar mais cedo para casa. “Estou esperando para ver se consigo abrir na quinta (hoje)”, disse Laine Amorim, que há 20 anos é proprietária do brechó Marília 145. “Já houve uma chuva forte outra vez, mas nunca dessa forma.”

Banca vizinha de Kalil é levada pela água


Uma das comerciantes mais tradicionais do bairro de Lourdes é Maria da Penha Miranda Soares, de 65 anos. Em outubro passado, ela comemorou os 35 de sua banca de revistas na Praça Marília de Dirceu. A banca não existe mais. Foi destruída pela força das águas na noite da última terça.


 
Maria da Penha só soube do ocorrido quando chegou para trabalhar, ontem pela manhã. É que ela tem o hábito de desligar o celular quando chega em casa depois do trabalho. Enquanto o temporal destruía a Praça Marília de Dirceu, Maria da Penha não viu as mensagens enviadas pelo WhatsApp que davam conta dos estragos na região.
 
“Quando cheguei hoje cedo, estava desse jeito.” Tudo foi perdido: guloseimas, revistas (molhadas, estavam ensacadas na manhã de hoje), cigarros, máquina de cartão, chip de celular. Ela estima um prejuízo de R$ 60 mil só da estrutura da banca, sem contar os produtos que vende. “E só existem três destas bancas em Belo Horizonte”, disse Maria da Penha, que não tem seguro do negócio, localizado a poucos metros do apartamento onde mora o prefeito Alexandre Kalil (PSD).