Jornal Estado de Minas

Cartilha critica folião com 'fantasia de índio' e peruca black power em BH

(foto: Katú Mirim/ Redes Sociais)
A Prefeitura de Belo Horizonte publicou nesta quinta-feira (13), no Diário Oficial do Município (DOM), uma cartilha com orientações aos foliões com o objetivo de combater atitudes racistas, machistas e LGBTQIfóbicas durante o carnaval de BH. O texto desaconselha o uso de trajes e objetos que possam ferir a dignidade dessas pessoas e desrespeitar povos indígenas, negros e ciganos.



A intenção da cartilha desenvolvida pelo Conselho Municipal de Igualdade Racial é combater a prática de usar elementos e vestimentas que fazem parte da cultura de diferentes povos, como cocar, penas, pintura corporal, além de perucas black power nos blocos de rua. A prática tem mobilizado nos últimos anos campanhas em todo o país de conscientização e respeito à cultura dos povos nativos, negros e ciganos. 

Veja o que diz a cartilha:

Letra de marchinhas  

“‘O teu cabelo não nega, mulata. Porque és mulata na cor’ – Chega de Assédio!: As marchinhas são tradição, porém, algumas perpetuam o racismo velado em expressões de bestialização e hipersexualização do corpo negro. ‘Teu Cabelo não nega’, ‘Mulata Bossa Nova’ e ‘Negra Maluca’ materializam o imaginário social pejorativo em estereótipos como o da mulata (animal estéril nascido do cruzamento de burro com égua) e do negão do pau grande (King Kong). Fantasiar-se de mulher negra empregada doméstica ou enfermeira sexy é conceber a mulher negra como objeto sexual. Basta! Basta de assédio a todas mulheres! Basta de assédio e hipersexualização da mulher negra!” 

Combate ao racismo  

“Blackface não é fantasia!: Blackface é técnica teatral usada para pintar pessoas brancas de negras de maneira caricata. Destacou-se no filme ‘O Nascimento de uma Nação’, o qual contribuiu no ressurgimento da Klu Klux Klan nos EUA. Os protagonistas brancos interpretavam negros como pouco inteligentes e sexualmente agressivos. Isso culminou em práticas reais de linchamento e adoção da Lei de Segregação Racial. O blackface carrega a simbologia do apartheid; e no Brasil não deve ser confundido com homenagem. Nosso cabelo e nossos símbolos sagrados não são adereço de Carnaval!: O uso de perucas ‘blackpower’, ‘nega maluca’, ‘dreadlocks’, ‘touca com tranças’ entre outras representativas das culturas africanas tem sido prática corriqueira e desagradável. Traduzem se como desrespeito aos símbolos da resistência negra às formas padronizadas de beleza e outras imposições aos corpos negros.”

Respeito à religiosidade

“Outra bola fora é usar roupas próprias das religiões de matriz africana ou de orixás, como Iemanjá, de forma descontextualizada. Exigimos respeito à nossa cultura e ao que nos é sagrado. As vestimentas e ornamentos indígenas compõem sua tradição e, por usá-las, indígenas são frequentemente violentad@s: ônibus não param, estabelecimentos impedem sua entrada, sofrem deboche, e têm que lidar ainda com atrocidades às suas terras, águas, bichos e plantas. Em muitas culturas o cocar é sagrado e próprio para ritos especiais. Usar objeto sagrado de maneira recreativa é reduzir a cultura indígena ao exótico; trata-se mais de um sinal de poder e dominação e não de homenagem. Não passe vergonha ao usar cocar pra curtir o bloco enquanto a população indígena é vítima de genocídio!” 

Estereótipo cigano

“Cigan@ é legal só no carnaval? Você conhece a cultura dos povos ciganos? Provavelmente muitas pessoas responderão que não. O desconhecimento é um dos fatores da marginalização dos povos ciganos, os quais lutam cotidianamente para ser tratados com dignidade. Ser maltratad@ na rua, lojas, bancos e serviços públicos é algo constante em seu cotidiano. A maioria das pessoas se mantém indiferente e até favorável a tais situações. A gozação com o uso bandana, lantejoulas douradas e outros elementos associados à cultura cigana fortalece estereótipos racistas.” 

Machismo e LGBTQIfóbicas

“Trans-fake” - Homem vestido de mulher. Homens vestidos de mulher (e até mesmo de noiva) estão por todas as cidades do país no Carnaval. Mas o que está errado? Além de ser machista e desrespeitoso com as mulheres, uma vez que representa-se a imagem feminina sempre de maneira descompromissada e jocosa. Essa “moda” é preconceituosa contra as pessoas trans e apenas reforça os estereótipos de gênero e relações de poder. E se ao contrário de se vestir como essas pessoas, você começar a se colocar no lugar delas, reconhecer seus direitos e contribuir com suas lutas? Respeito à população LGBTQI negra: A população negra LGBTQI convive e luta contra várias formas de preconceito e segregação. Até hoje mulheres e homens negros em sua diversidade de gênero e orientação sexual convivem com o medo de sofrer o estupro dito “corretivo” muito recorrente na época de carnaval. Sendo assim, respeitar os direitos da população negra LGBTQI vai ao encontro da importante percepção desse povo como cidadãos que têm suas contribuições na sociedade. Toda forma de desrespeito e depreciação vai contra princípios dos direitos regidos pela Constituição e pelo Estatuto da Igualdade Racial.”



Criminalização e violência

“Não ao higienismo e sim ao direito à vida! A cultura e estética de origem negra e periférica é alvo constante de olhares depreciativos e ações de controle por parte da sociedade e do Estado. No carnaval é possível e urgente não se omitir diante de violências sofridas por jovens negros e pobres que tentam ter o direito de circular pela cidade. Nos casos de violência institucional e abordagens truculentas pelas forças policiais, você tem o poder de acionar a ouvidoria e relatar a situação indicando dia, hora e local do ocorrido (a identificação do agente da violência também é importante). Jovens negros vistos como indesejáveis em espaços historicamente ocupados por brancos são condenados ao estigma de suspeitos e perigosos, tornando-se alvo da criminalização e controle de seus corpos. Embora o Estatuto da Juventude preconize que todos os jovens são sujeitos de direitos, estamos ainda numa realidade de valorização exacerbada do patrimônio em detrimento da vida. O Brasil é um dos países com maior número de homicídios de jovens negros, o que se traduz como genocídio da juventude negra e pobre. A superação dessa terrível e inaceitável realidade é de sua responsabilidade também!”

Confira o conteúdo completo da cartilha publicada no DOM

Campanha #índionãoéfantasia

Em 2018, a ativista e rapper indígena Katú Mirim mobilizou uma campanha nacional com a hashtag ÍndioNãoÉFantasia para chamar a atenção contra a prática de foliões em várias cidades brasileiras usar vestimentas que fazem referência à cultura de diversos povos nativos.

Ativista e rapper indígena Katú Mirim mobilizou no ano passado uma campanha para chamar a atenção contra o uso de roupas e adereços que desrespeitem povos nativos (foto: Katú Mirim/ Redes Sociais)
Na época, Katú Mirim publicou um vídeo nas redes sociais explicando que o uso desses trajes é considerado racista e ofensivo por se apropriar da cultura dos povos indígenas. "Usar fantasia de índio é racismo porque discrimina nossa raça, reforça estereótipos, a hipersexualização da mulher indígena. O movimento indígena sempre sofreu com a invisibilização. Nós não somos uma fantasia. Pessoas não são fantasia, nossa cultura não é fantasia. Ela existe, nós existimos", afirmou.

Em 3 de fevereiro deste ano, Katú Mirim publicou em seu perfil no Facebook uma foto que retoma a campanha para o carnaval deste ano, com a frase: "Valorize essa sua boquinha linda, nesse carnaval não beije aquelas pessoinhas que usam 'fantasia de índio' #indionaoefantasia".

*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Alves