“Bem-vindos ao paraíso”. Se a placa existisse, não seria surpresa que estivesse nas proximidades do distrito de São Gonçalo do Bação, no município de Itabirito, na Região Central de Minas Gerais. Matas, cachoeiras, nascentes, montanhas, sobrados do período colonial, chafarizes e uma tranquilidade envolvente seduzem quem chega à localidade de 600 moradores, a 16 quilômetros da sede municipal e a 54 de Belo Horizonte. Mas, nos últimos tempos, essa paz se tornou ameaçada, levando vizinhos da igreja dedicada ao padroeiro, sitiantes, produtores e pessoas da zona rural a se mobilizar contra um risco: a instalação de um grande projeto de mineração na Serra do Lessa, chamada carinhosamente de Serra das Serrinhas. “Estamos angustiados, pois não queremos degradação, poluição do ar e das águas e barulho a troco de promessas de emprego, desenvolvimento”, diz o presidente da associação comunitária local, Márcio Ziviani.
A preocupação da comunidade se espelha em estudo de impactos ambientais (EIA), de julho de 2019, que enumera efeitos negativos do empreendimento para a região, inserida na Reserva da Biosfera Mata Atlântica/Transição e na zona de amortecimento da Serra do Espinhaço. Na manhã de sábado, entre sol forte e alguns chuviscos, Ziviani reuniu integrantes da associação para nova rodada de conversas sobre o empreendimento da Flapa Engenharia e Mineração. Diante da Matriz de São Gonçalo do Bação, cuja construção começou em 1740, a turma deixou bem claro que todos são bem-vindos ao distrito, menos a mineração na Serra do Lessa. Certo de que o melhor é cortar o mal pela raiz, o grupo pediu à prefeitura local para não emitir a declaração de conformidade, um sinal verde quanto às diretrizes do município (plano diretor, lei de uso e ocupação do solo etc.) à mineração. Em paralelo, a mineradora busca o licenciamento em instâncias estaduais, a fim de operar no terreno adquirido.
“Há muita falta de informação. Não sabemos como será o projeto, precisamos de esclarecimentos urgentes e detalhados”, destaca o presidente da associação, que aguarda posicionamento da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e pretende buscar apoio do Ministério Público de Minas Gerais na batalha contra o que a comunidade considera uma ameaça. Uma reunião marcada para a tarde do último sábado foi adiada, sem data. A suspensão intrigou ainda mais os moradores do vilarejo, pois, em 18 de janeiro, encontro previsto também não ocorreu.
Em informativo da associação comunitária, um texto sob o título de “Mau começo” critica a situação. Segundo Ziviani, a reunião seria, inicialmente, no interior da igreja e foi transferida para uma sala de aula da escola municipal. “Como compareceram mais de 100 pessoas, o local não comportou, havendo o adiamento. Agora, queremos saber o que vai acontecer. O atraso e a sonegação de esclarecimentos geram medo, ansiedade, sem contribuir para a credibilidade dos empreendedores”, destaca.
NASCENTES Lembrando dos últimos desastres ambientais em Minas – o rompimento de barragens em Bento Rodrigues, em Mariana, em 2015, e Brumadinho, há pouco mais de um ano, com centenas de mortos, desaparecidos e população traumatizada – os integrantes da associação têm como referência o distrito próximo de Miguel Burnier, no município vizinho de Ouro Preto, que conheceu as degradações ambientais e sociais após a exploração mineral em alta escala. “Não queremos o mesmo destino para São Gonçalo do Bação. Pode ser que, no início, o comércio daqui seja favorecido com a chegada dos trabalhadores, mas isso é por pouco tempo. Depois, ficam a poeira, os ruídos, a lama, a contaminação das águas, sem falar na violência e no inchaço populacional”, prevê Ziviani.
A equipe do Estado de Minas percorreu alguns trechos da Serra do Lessa na companhia do biólogo e professor da rede municipal Francisco Lana Nascimento, do coordenador do grupo de teatro São Gonçalo do Bação Mauro Antônio de Souza, pesquisador da história local, do artista plástico Valdeci Moura, do casal Elias Costa de Rezende, produtor de cachaça, e Maria Lúcia Azevedo Rezende, engenheira aposentada, e do vice-presidente da entidade, Paulo César Guerra. Seguindo pela Rua das Pimentas em direção à Serra do Lessa, estavam abertas as portas do “paraíso ambiental” por entre matas, margens de córregos, pousadas charmosas e personagens nativos ou turistas: cavaleiros solitários ou em grupo, famílias indo às compras de sábado e ciclistas fazendo selfies.
apreensão Com mestrado em limnologia (estudo de mananciais) e dono de um sítio na região de Gomes, a cinco quilômetros da matriz, o biólogo Francisco explica que a vegetação na Serra do Lessa é uma transição entre cerrado e mata atlântica. E, em uma trilha sombreada – daquelas que o visitante quer seguir eternamente, tal a temperatura agradável, beleza e profusão de tonalidades das plantas – Francisco leva os repórteres a uma nascente bem protegida. “Estamos na região do Alto Rio das Velhas. Estas águas são do Córrego Carioca, manancial no qual é feita a captação para abastecimento de Itabirito. Mas os impactos (de eventual empreendimento minerário) serão sentidos também na capital, pois nossos cursos d'água vertem para o Velhas, também responsável pelo abastecimento dos belo-horizontinos.”
Ciente da importância do ecossistema, Francisco cita a riqueza da fauna, com registro de aparecimento de onça-pintada, e da flora exuberante, além de sítios arqueológicos. Mauro, pesquisador da história local e coordenador do teatro, conta que o trânsito de caminhões colocará em risco o patrimônio local, pois muitas casas são de pau-a-pique, algumas delas já sumidas do mapa. Para ele, o distrito tem outra vocação: “O mais indicado é um projeto ecológico-turístico, de forma a valorizar a cultura, a história e o meio ambiente”.
Ele conta que o antigo arraial, hoje cobiçado pelo minério de ferro, nasceu no Ciclo do Ouro e se tornou via natural para tropeiros em direção à antiga Vila Rica, atual Ouro Preto. Igualmente preocupado com a situação e mobilizado para evitar a chegada do empreendimento, o produtor de cachaça Elias adianta que, em meados de março, haverá uma assembleia para avaliar os rumos do movimento.
'Vai ser poeira o tempo todo'
Nos últimos dias, o assunto no distrito é o projeto de mineração. Está na boca do povo na mercearia, no restaurante, nas casas. Nascido e criado “ao lado da igreja”, o ferroviário aposentado Altamiro Edson de Carvalho se declara terminantemente contra a entrada da empresa na Serra do Lessa. “Com ela, isso aqui vai acabar, pois vai tomar conta de tudo, como ocorre em lugares próximos. Vai ser poeira subindo e caminhão passando o tempo todo”, prevê.
Moradora com a mãe, dona Divina, de 92 anos, de um casarão do início do século 18, a artesã Regina Célia de Carvalho mantém um ateliê na parte de baixo do imóvel, onde se reúnem companheiras de ofício para fazer bonecas de crochê e outros trabalhos manuais. “Respeito a mineração, mas está na hora de a atividade ser repensada em Minas. O momento atual é importante para se evitarem os impactos, impedir a descaracterização das comunidades”, diz ela, à porta do sobrado, com a linha e agulha nas mãos. Logo adiante, está uma árvore frondosa e área gramada. “Somos seis filhos e, nos fins de semana, vem todo mundo para cá. Colocamos as mesas na rua para almoçar”, conta, com satisfação.
O secretário municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Itabirito, Frederico Arthur Souza Leite, sustenta que desde o início do processo vem buscando diálogo entre os donos da mineradora e a comunidade. “A prefeitura já se comprometeu com a associação a não fornecer a declaração de conformidade, enquanto não ocorrer a reunião com os moradores”, disse ontem o secretário, explicando que o Executivo enviou um projeto de lei à Câmara para normatizar o processo, incluindo o fechamento da mina, afirmou. Frederico disse reforçou a vocação de São Gonçalo do Bação para atividades ecoturísticas, como trilhas.
Procurada pelo Estado de Minas, a Flapa Engenharia e Mineração preferiu não se manifestar sobre o assunto no momento.
SINAIS DE ALERTA
Estudo de impacto ambiental elaborado por consultoria indica que serão muitos os reflexos do projeto de mineração na região da Serra do Lessa, no distrito de São Gonçalo do Bação, em Itabirito. Confira alguns listados no documento:
» RELEVO
Sob os aspectos da morfologia e alteração de relevo, as principais alterações se darão pela abertura da cava e implantação da unidade tratamento de minerais e da pilha de estéril/rejeitos.
» VEGETAÇÃO
As ações destinadas ao início das atividades de lavra, além do beneficiamento, deposição de subproduto e pilha de estéril resultarão na necessidade de supressão da vegetação nativa, o que poderá causar alterações nas condições naturais, de habitat, modificação do uso do solo, entre outras.
» SOLO
Intervenções nas áreas afetadas pelo empreendimento deixarão expostas as camadas inferiores do solo, o qual, desprovido de sua estrutura física e biológica e da vegetação original, tende a se tornar empobrecido. A alteração provocará, ainda, a exposição de um substrato mais suscetível à erosão, podendo gerar assoreamento de córregos. Em curto e médio prazos, a alteração das características do solo será direta e de grande magnitude, devido à grande extensão das intervenções.
» ÁGUAS
Durante as atividades do Projeto Serra do Lessa, o carreamento dos sedimentos gerados poderá provocar a alteração da qualidade das águas do Ribeirão Mata Porcos, acima e abaixo do empreendimento, Córrego do Felipe e Ribeirão Carioca. Tais impactos terão abrangência regional, podendo ser caracterizados como negativos e de alta magnitude. O impacto é considerado importante, pois pode comprometer o uso da água, além de provocar efeitos negativos sobre a vida aquática.
» AR
As atividades têm potencial de geração de poluentes capazes de alterar a qualidade do ar da região. A geração de material particulado na área do empreendimento será proveniente das obras de implantação da unidade de tratamento de minério e unidades de apoio, das atividades de lavra, da movimentação de máquinas nas frentes de lavra e do tráfego de caminhões no escoamento de minério. Associadas ao solo exposto e à direção e intensidade dos ventos, as atividades podem gerar incômodo aos empregados e pessoas em áreas vizinhas à mina e à estrada de escoamento.
» CONTAMINAÇÃO
Durante as obras de implantação e operação, considera-se a potencialidade de contaminação do solo e das águas superficiais e subterrâneas pela geração de efluentes líquidos: óleos e graxas e efluentes sanitários. Já na fase de operação, os efluentes oleosos nas operações de manutenção das máquinas e equipamentos, caso não sejam devidamente tratados, apresentam o potencial de acarretar a alteração da qualidade das águas
e solo.
» RESÍDUOS SÓLIDOS
Durante as fases de implantação e operação do Projeto Serra do Lessa, o principal resíduo sólido consistirá do estéril que será gerado nas atividades de lavra. O maior volume de resíduos sólidos gerado será de material inerte (rejeito do beneficiamento). Nas demais atividades da operação do empreendimento, serão gerados resíduos sólidos domésticos e industriais. Esses resíduos, caso dispostos inadequadamente, podem apresentar riscosde contaminação das águas subterrâneas e superficiais e dos solos.
» FAUNA E FLORA
Fluxo de pessoas e máquinas, aumento no nível de ruído e no nível de particulados, supressão da vegetação e alteração do hábitat, nas fases de implantação e operação do empreendimentovão afugentar espécies. Esses impactos causam desequilíbrio durante todas as fases do empreendimento. Durante a operação, poderão ocorrer também coletas predatórias e consequente redução de populações de espécies da flora (produtores primários) e da fauna. Além disso, ações de supressão vegetal podem desabrigar ou ferir animais.
» TRÂNSITO
O incremento de tráfego aumentará o impacto relativo à geração de poeira e ruído, mas também relativo à segurança e incômodo à população no trecho da área urbana do distrito.