Sabotagem, erro na fábrica ou contaminação dolosa. Essas são as três linhas nas quais a Polícia Civil se debruça para desvendar a presença de substâncias tóxicas nas cervejas da Backer, relacionadas a 34 casos suspeitos de intoxicação por dietilenoglicol, sendo seis mortes. Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, os investigadores revelam detalhes do trabalho que mobiliza autoridades policiais e sanitárias desde o começo do ano.
De acordo com o delegado responsável pelo caso, Flávio Grossi, não há dúvidas de que a contaminação das cervejas por monoetilenogicol e dietilenoglicol – produtos tóxicos usados na produção cervejeira, mas que não podem ter contato com a bebida – ocorreu dentro da fábrica. A investigação procura agora entender, entre outras questões, “quem sabia dessa contaminação ou se assumiu a responsabilidade pela contaminação”.
A entrevista contou também com a participação do superintendente de perícia técnica e científica, Thalles Bittencourt, que chamou a atenção para a extensão da exposição aos compostos. “Não é um período de um ou dois dias, é bem mais longo do que isso”, disse. Confira esse conteúdo também no podcast O caso Backer, série especial do EM que conta essa história de um jeito que você ainda não ouviu.
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Quais são as hipóteses consideradas hoje pela Polícia Civil para a contaminação das cervejas?
Flávio Grossi: Temos linhas investigativas que têm que ser seguidas. Já foi amplamente divulgada uma possível sabotagem, um erro fabril, uma possibilidade dolosa de contaminação. O inquérito está dividido em três frentes. A primeira é o reconhecimento de vítimas. Elas têm que tomar ciência de que foram intoxicadas, chegar ao inquérito por documentos médico-legais. O segundo ponto é entender onde ocorreu essa contaminação dentro do sistema fabril. Já temos a certeza de que foi dentro da fábrica. E o terceiro ponto é entender quem sabia dessa contaminação ou se assumiu a responsabilidade por aquela contaminação.
Alguma delas pesa mais em relação à outra?
Flávio Grossi: É natural no trabalho investigativo que algumas linhas se destaquem das demais. Nesse momento, não é adequado descartar as linhas.
É possível ter ocorrido uma adição intencional da substância tóxica?
Flávio Grossi: Isso é um ponto a se desvendar.
Por que a Polícia Civil decidiu estender a investigação para casos anteriores a outubro de 2019?
Flávio Grossi: Os casos anteriores são condizentes pela existência de pacientes com sintomas similares aos que encontramos hoje e que também indicam o consumo da cerveja. Só o sintoma é um fato. A coincidência do consumo e sintoma é um somatório que nos indica contaminação. É muito difícil, neste momento, conseguirmos a substância no sangue, porque há uma filtragem natural. Mas todo o diagnóstico coincide com diagnósticos de hoje. Se a nossa investigação por outros motivos acredita que há uma extensão na contaminação, é lógico que haverá outras pessoas intoxicadas.
Muitas vítimas de períodos anteriores também se concentraram nos meses do final e início do ano, dezembro, janeiro, fevereiro... Isso chama a atenção de vocês?
Flávio Grossi: Faz parte da investigação entender o gráfico de produção e consumo. Mas é isso.
Embora a contaminação da cerveja se estenda a mais de 50 lotes, englobando milhares de garrafas, temos somente 34 casos de intoxicação sendo investigados. Por que essa diferença?
Thalles Bittencourt: A primeira explicação é a faixa de toxicidade da substância. Para uma pessoa de 70 quilos, a dose tóxica letal pode variar de 1g a 12g. Além disso, uma pessoa que consumiu mais tem mais possibilidade de sintomas. Depende se a pessoa consumiu junto com outro destilado, porque o etanol é um antídoto. Temos a própria capacidade de reação de cada corpo, que é diferente. Isso explica por que pessoas tiveram a evolução tão drástica, outras tiveram sintomas mais leves, e outras sintomas nenhum.
Em entrevista ao Estado de Minas, a diretora de marketing da cervejaria, Paula Lebbos, questionou que não há análise quantitativa do dietilenoglicol na cerveja. É um aspecto que está sendo apurado pela polícia?
Thalles Bittencourt: O agente é tóxico e não pode estar presente em alimento. Está sendo desenvolvido esta semana (17/2 a 21/2) pela Polícia Civil o quantitativo tanto para o monoetilenogicol quanto para o dietilenoglicol. Isso é importante, mas é um dado a mais. Não tira a importância do fato de que é a cerveja que não poderia estar com uma substância tóxica que causou toda aquela sequência de eventos clínicos e, eventualmente, óbitos. A dosagem pode auxiliar no entendimento, mas não mudar o que já está posto.
A Polícia Civil foi ao fornecedor de monoetilenoglicol à Backer e constatou que a empresa adulterava o produto, com a adição de dietilenoglicol. O que isso muda na investigação?
Flávio Grossi: Nesse momento investigativo, não é uma linha que vá causar qualquer impacto na investigação. Se é mono, se é di, é produto tóxico. É uma pergunta que tem que ser respondida na investigação, mas, no produto final, não faz diferença nenhuma.
O que a polícia consegue afirmar até agora sobre a investigação?
Thalles Bittencourt: Está posto que tem cerveja contaminada por mono e dietilenoglicol. Está posto que pessoas adoeceram de quadro absolutamente compatível com a intoxicação por mono e/ou dietilenoglicol. Tem pessoas que morreram com a necropsia compatível com a mesma intoxicação. E tem, em um dos casos, a dosagem positiva no sangue da vítima para dietilenoglicol. Essa sequência de fatos está posta, não tem dúvida.
E quanto à extensão da contaminação?
Thalles Bittecourt: A força-tarefa já mostrou claramente que não foi um dia, um lote. Há uma sequência de lotes com o problema da contaminação. Trata-se de um período que está sendo ainda delimitado, mas que não é um período de um ou dois dias, é bem mais longo do que isso.
A partir do que está posto, é possível dizer se a Backer tem ou não alguma culpa?
Flávio Grossi: A culpabilidade penal é sempre dada ao indivíduo. Não se pode falar de culpabilidade de uma empresa na esfera penal. É um momento da investigação que está sendo desenvolvido e que seria nossa pergunta secundária principal.
As famílias das vítimas querem respostas. A Backer quer respostas. Quando elas serão dadas?
Flávio Grossi: É um inquérito de matéria não comum à polícia. Temos que entender o sistema de fabricação complexo, com várias fases distintas. E, depois de entender, temos que estudar possibilidades de falha. As famílias desejam a solução não mais que nós. A cautela é mais que uma garantia para todos os indivíduos, vítimas e autores.
Thalles Bittencourt: A Polícia Civil, junto com as outras agências públicas envolvidas, tem dado muitas respostas céleres dentro da complexidade do caso. Essas respostas foram dadas e continuam sendo dadas de forma muito sólida, transparente e responsável, sem causar nenhum prejuízo à investigação. E sem impedir que as autoridades sanitárias tomassem as medidas que lhes competem no objetivo de garantir a saúde pública.
Como a Polícia Civil tomou conhecimento da suspeita de intoxicação?
Thalles Bittencourt: No dia 3 ou 4 de janeiro, a gente começou a receber de grupos de colegas médicos e de nefrologistas o histórico de pessoas com quadro semelhante de acometimento renal e neurológico. No domingo, dia 5, tive um contato formal da Secretaria de Estado de Saúde (SES) sobre essa situação e que haveria, no dia 6, segunda de manhã, uma reunião na Cidade Administrativa com a Saúde Municipal, Estadual e a PC. No dia 5, fiz contato com a chefia de Polícia, que determinou a instauração de um procedimento preliminar de investigação. A requisição de exames de sangue das primeiras vítimas foi expedida pelo delegado de Polícia. Na segunda, fizemos uma diligência por um médico-legista e um investigador em vários hospitais em BH, coletando sangue dessas primeiras vítimas. O legista de Juiz de Fora fez a coleta do paciente de lá.
Flávio Grossi: Logo no início, por coincidência, as vítimas foram contaminadas no Buritis. Quando chegaram à delegacia já entregaram algo mais ou menos pronto. O conhecimento entre as vítimas do bairro ajudou a montar uma gama de conexões que demoraria um tempo para ser feita. De início, acreditávamos que a contaminação teria sido somente no Bairro Buritis. Mas depois se desenvolveu para outros locais. Temos o conhecimentos de mais de 50 lotes com contaminação.
E de que forma descobriram que era o dietilenoglicol?
Thalles Bittencourt: Já existia suspeita que seria a cerveja Belorizontina da Backer. No dia 8, a suspeita era metanol. O laboratório da Criminalística começou a dosar metanol na cerveja. O laboratório do Instituto Médico-Legal (IML), que trabalha com as amostras de sangue, começou a dosar metanol nas amostras, mas a cerveja deu negativo para essa substância. Aí pedi para suspender as dosagens no sangue, porque as amostras eram muito pequenas e a gente sempre teve muito receio de consumi-las. Elas foram coletadas nos primeiros pacientes com o objetivo toxicológico, para dosar outros parâmetros, como agentes infecciosos. Começou-se a suspeita clínica que veio dos próprios hospitais de intoxicação por dietilenoglicol. Dia 8, às 23h30, recebo o chamado telefônico da chefe do laboratório de Criminalística, informando que deu positivo para dietilenoglicol. Dia 9, fomos à Backer para o início da perícia e comunicamos que se encontrou a substância tóxica na cerveja.