Os primeiros meses deste ano vieram para quem tem nervos de aço, sangue-frio e coração forte. Chuvas torrenciais e coronavírus circulando mundo afora testaram os limites da paciência, obrigaram muita gente a mudar os hábitos e levaram os cientistas, numa situação semelhante a “decifra-me ou devoro-te”, à urgência de mergulhar nos estudos para entender mais um enigma do século 21. Neste Dia Internacional da Mulher, mulheres como Fabrícia Aparecida Paulino, de 37 anos mostram como enfrentam os desafios e o inesperado dos fatos que deixaram mortos, famílias desamparadas, pessoas traumatizadas e uma imensa interrogação no ar. Pela determinação do trio, não seria exagero dizer que elas, entre milhões do universo feminino, “têm a força”: para lutar, criar, sonhar, melhorar a humanidade e, principalmente, viver.
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'Meninas, venham ser cientistas', diz médica brasileira que sequenciou o genoma do coronavírus'Temos de ser fortes, amar a família e tocar o barco', reflete Cristina, com 64 anos e muitas tragédias superadas'Cadê o homem que engravidou?': protesto em BH pede legalização do aborto e critica governoEngenheira mecatrônica, consultora da ONU quer 50% líderes femininas até 2030O nascimento de Duda: jovem trans narra sua luta pelo direito de existirGuardiãs do cidadão: conheça as mulheres que giram a roda da Justiça EleitoralQuinta-feira (5) foi um dia diferente na vida de Fabrícia, mãe de Marlon, Thaynara, Taynan, e Mayra e avó de Elise, de 1 ano e dois meses. Com forte gripe, faltou ao trabalho, mas, à tarde, reuniu forças, aprumou o corpo e entrou no ônibus rumo ao Centro de Belo Horizonte. O motivo não poderia ser mais nobre para ela: o curso de eletricista predial, do qual fala com quase devoção.
“Esse serviço sempre foi meu sonho. Já consertei chuveiro aqui em casa, arrumei a torneira do tanque, dei um jeito no ventilador.” As aulas começaram em 3 de fevereiro, quando Fabrícia também conseguiu emprego na sua área de atuação. “Sou ligada na tomada 220 volts, estou feliz demais fazendo o que gosto.”
Tranquilidade em meio ao caos
O momento era trágico, mas, com lucidez, Fabrícia manteve a calma e conduziu a família a um lugar seguro. Na chuva histórica de 25 de janeiro, a casa onde ela morava, no Bairro Jardim Alvorada, na Região da Pampulha, “começou a dar estalos” – na região, houve morte, por soterramento, de uma mulher e três filhos e um vizinho.Sem esperar pelo pior ou ir para um abrigo, ela alugou um quarto para alojar toda a família, e encontrou novo endereço no Bairro Ouro Preto. “Veja só, em 4 de janeiro fizemos, naquela casa, a festinha de 1 ano de Elise. Já estava chovendo, mas nada aconteceu, felizmente”.
Segurando todas as “pontas” financeiras e emocionais, Fabrícia não se entregou e manteve a energia. Na época, ao encontrá-la perto da casa à beira do barranco, os repórteres do Estado de Minas ficaram impressionados com a serenidade no rosto para o recomeço. “Estava triste por perder a moradia, mas animada pela profissão de eletricista e de ficar junto com a família”, conta Fabrícia, que mora com o namorado, Luiz Fernando, de 25. Entusiasmada com o curso de eletricidade predial, diz que o Centro Divina Providência Profissionalizante (Cedipro) oferece também curso de corte e costura, e tem alunos. “Sou das poucas mulheres que fazem o curso de eletricista.”
"É preciso respeito"
Mulher, negra e eletricista. E por que não? O comentário sobre a profissão é a deixa para Fabrícia falar sobre preconceitos sofridos ao longo da vida. Trabalhou muitos anos como doméstica, e ouviu palavras ofensivas sobre a cor da pele. Quando muda o rumo profissional, depois de vender lingerie e servir em bufês, escuta que se trata de uma profissão de homem. “Respondo que não! Qualquer um pode ser eletricista, um ofício que exige calma”, avisa.O que a tira mesmo do sério é preconceito contra a mulher: “Se uso um short curto, que gosto muito, não significa que a porta está aberta. Se dou um sorriso, não quer dizer que estou disponível. É preciso respeito”, afirma a mulher, que, conforme diz, nunca está igual. “Mudo sempre o cabelo. Ontem estava de cabelão, hoje estou de trancinhas. Gosto desta transformação.”
Junto dos filhos Thaynara, de 19, mãe de Elise, e Taynan, de 17, que estavam em casa na tarde de quinta-feira – os outros são Marlon, de 21, que trabalha, e Mayra, de 11 – Fabrícia quer mesmo é ser feliz. O namorado também estava no batente. “Sabia que Deus tinha um presente para mim. E ele chegou nesta fase da vida”, afirma a mulher sobre a capacitação profissional, antes de revelar mais um sonho. “Quero me casar com um vestido branco, tomara que caia, e carregando rosas vermelhas, minha paixão”. Então, é esperar pelo futuro.