Nas ruas calçadas de pedra, só se ouve o badalar dos sinos das igrejas barrocas marcando as horas. As lojas estão fechadas, os museus, com avisos na fachada, e os moradores, em suas casas, dentro do isolamento social. Turistas, nenhum, neste ano de comemoração do tricentenário da Capitania de Minas.
A poucos dias das cerimônias da semana santa, Ouro Preto e Mariana, na Região Central, Tiradentes, no Campo das Vertentes, Diamantina e Serro, no Vale do Jequitinhonha, junto a outras cidades coloniais mineiras, vivem um tempo único em sua história devido à pandemia do novo coronavírus, que provoca a COVID -19: cancelamento das procissões, missas solenes e das encenações da paixão de Cristo e dos ritos em latim, que atraem multidões.
"No setor turístico, este é o segundo momento mais importante no calendário dos municípios, sendo o primeiro o carnaval, que, em 2020, foi o melhor em décadas. Esperávamos muitos visitantes agora", diz o presidente da Associação das Cidades Históricas, José Fernando Aparecido de Oliveira, prefeito de Conceição do Mato Dentro, na Região Central do estado.
Na falta das celebrações centenárias, os municípios se antecipam para atender os possíveis casos de COVID-19. É o caso de Ouro Preto, que implanta um hospital de campanha no prédio de fábrica de tecidos do século 19, restaurada para ser uma área de eventos. "O patrimônio não faz sentido sem a vida humana", destaca o secretário municipal de Cultura e Patrimônio, Zaqueu Astoni Moreira.
Em Tiradentes, um decreto do prefeito Zé Antônio do Pacu (PSDB) restringiu a circulação de pessoas na cidade e eventos famosos foram suspensos. Fortemente dependente do turismo, a cidade sente os efeitos do esvaziamento, mas donos de negócios entendem que o isolamento é necessário. Para impedir a quebradeira, entretanto, já reivindicam subsídios dos governos municipal, estadual e federal para os pequenos negócios.
Diamantina também está em compasso de espera. A vesperata, evento que ocorre em abril, maio e junho e e movimenta o turismo da cidade, está suspensa até segunda ordem. As ruas estão desertas e a expectativa de retomada da economia depois do fechamento de garimpos teve que se adiada.
Agenda cheia e dúvidas
Com 72 mil habitantes, população flutuante que cresce muito devido à universidade federal (Ufop) e outras tradicionais unidades de ensino, Ouro Preto tem na semana santa um orgulho para os moradores e um chamariz para o turismo. "Nossas procissões são famosas no mundo inteiro e atravessam os séculos, mantendo a essência", conta o secretário Zaqueu.
Neste ano, a agenda de atividades cívicas e culturais em Ouro Preto está cheia. A primeira, ainda indefinida pelo governo do estado, se refere ao 21 de Abril, com as homenagens à Inconfidência Mineira. As demais serão a partir de junho, quando, espera-se, a pandemia terá arrefecido: 250 anos da Casa da Ópera (junho), 300 anos da Sedição de Vila Rica (julho), 300 da Capitania de Minas (dezembro) e quatro décadas da conquista do título de Cidade Patrimônio da Humanidade, o primeiro no país concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Essa festa será em setembro.
Com a área central tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Ouro Preto tem o Museu da Inconfidência, na Praça Tiradentes, entre os mais visitados do país, considerando-se os vinculados ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Agora, quem chega ao monumento para conhecer mais sobre a história do Brasil, em particular de Minas, encontra o aviso de que está fechado devido à pandemia.
A esplêndida Basílica de Nossa Senhora do Pilar, onde seriam realizadas as cerimônias da semana santa – em Ouro Preto, há um revezamento com a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, de Antonio Dias – também está de portas cerradas. "Nesta semana, teríamos a penúltima parte do Setenário das Dores", conta o diretor do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, vinculado à Paróquia do Pilar, Carlos José Aparecido de Oliveira, conhecido com Caju.
O Setenário, sobre Nossa Senhora das Dores, tem origens no século 18, com orações em latim sobre as "sete dores de Maria" e acompanhamento de orquestra. "Seguimos todo o original", afirma Caju. Ponto de visitação obrigatório, a Basílica do Pilar é uma das mais ricas do país, com imaginária e retábulos artisticamente trabalhados em ouro.
No momento, apenas o pároco Marcelo Moreira Santiago vai ao templo barroco, que, mesmo durante a pandemia, continua no centro das atenções. Há duas semanas, apareceram por láes, com cinco alemã guia, todos com máscara cirúrgica, querendo ver o interior da igreja tricentenária. "Fiquei surpreso", contou Caju.
HOSPITAL Enquanto espera para ajustar sua agenda para os próximos meses, Ouro Preto se prepara para enfrentar o coronavírus e preservar a saúde de seus moradores. Uma fábrica de tecidos, fora do Centro Histórico de Ouro Preto, a 95 quilômetros de Belo Horizonte, na Região Central, se transforma em hospital de campanha para atender os necessitados de socorro durante o tempo que durar a pandemia do novo coronavírus.
O projeto do prefeito Júlio Pimenta transformou o local em área de eventos, inaugurada no ano passado, mas, diante da gravidade da situação, a construção do século 19 será o Centro Avançado de Combate ao Corinavírus.
O hospital de campanha contará com 50 leitos e 12 respiradores. O local está sendo adaptado dentro das normas para o quadro de emergência, com revestimento de gesso cartonado na parede de tijolinhos original, tudo com recursos municipais. (GW)
Perdas que se repetem
A professora Hebe Rôla nunca imaginou que, aos 89 anos, ficaria sem participar das cerimônias da semana santa em Mariana, a Primaz de Minas – primeira vila, cidade, diocese e capital do estado."Dá muita tristeza, pois são atos religiosos de grande beleza cênica e de tradição", afirma a moradora do Centro Histórico e professora emérita, de letras, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
Sem sair de casa, a exemplo de todos em isolamento social e mais ainda por ordem médica, Hebe destaca a Procissão das Almas, que sai às ruas de Mariana, à meia-noite da sexta-feira da paixão, como um dos momentos solenes. "O povo gosta muito, e acredito que tudo merece reflexão."
Quem caminha pela Rua Direita, passa pela Praça da Sé, onde fica o pelourinho, e depois vai à Praça Minas Gerais, sente que o clima mudou. Sobrados fechados, avisos nas portas, monumentos trancados. O guia de turismo Paulo Gomes da Silva, de 46, está desolado com a situação. "As pessoas não saem de casa, os turistas não vêm mais. Esperávamos um movimento maior na semana santa, mas as cerimônias foram canceladas. Está difícil com o coronavírus. Temos que esperar por uma vacina, né?", lamenta o guia e ajudante em obra civil.
PERTENCIMENTO Ainda amargando os efeitos do rompimento, em 2015, de uma barragem de rejeitos de minério da Samarco, que deixou mortos e devastação ambiental, Mariana deverá ter novas perdas. "E sem recuperação, pois esta época é muito importante para o turismo e a cultura. Ficará uma mancha na nossa história, pois as pessoas têm uma relação de pertencimento com a semana santa", diz o prefeito Duarte Júnior.
Com dois casos confirmados de COVID-19 - "importados e identificados", informa Duarte Júnior, e outros em investigação, a prefeitura de Mariana mantém, nas vias de acesso à cidade, barreiras educativas. O prefeito esclarece que trabalho não é para impedir a circulação das pessoas, mas para orientar.
PREJUÍZOS O turismo religioso cresce no mundo e tem, em Minas Gerais, um destino poderoso. O presidente da Associação das Cidades e Históricas de Minas Gerais e prefeito de Conceição do Mato Dentro, José Fernando Aparecido de Oliveira ressalta que as cidades mineiras nascidas nos tempos coloniais são essencialmente turísticas, com grande fluxo de visitantes de todo o Brasil e do mundo, o ano inteiro. "Então, o impacto neste momento é muito grande em todas elas. Basta ver a extensão da cadeia produtiva do turismo, que vai das pequenas fábricas de doces e artesanatos aos grandes hotéis, pousadas e restaurantes". E mais: "Essa extensa cadeia produtiva, muitas vezes única fonte de renda para famílias inteiras, está sendo afetada agora.
Este momento é um grande desafio para todas as administrações municipais dessas cidades mineiras, e estamos em permanente diálogo, buscando soluções dentro da capacidade e do potencial de cada uma, também de forma conjunta".José Fernando cita como exemplos São Thomé das Letras, na Região Sul do estado, que pela proximidade com a capital paulista, onde foram relatados os primeiros casos de corona vírus no Brasil, "foi uma das primeiras cidades a tomar a decisão, e uma decisão drástica, de restringir a visitação". E também Conceição do Mato Dentro, "onde temos um turismo religioso muito forte e uma das maiores romarias do Brasil, com seus mais de 220 anos, que é do Bom Jesus de Matosinhos". (GW)