Medidas restritivas adotadas em todo o mundo para combater a COVID-19 têm auxiliado no desafio de reduzir a propagação da pandemia mas, por outro lado, intensificaram o risco de violência doméstica contra as mulheres. Muitas delas passaram a conviver 24 horas por dia com potenciais agressores. Especialistas ouvidas pelo Estado de Minas apontam que, para algumas mulheres que já vivenciam um ambiente violento, não sair de casa pode ser sinônimo de mais vulnerabilidade. Nesses casos, saiba como ajudar e como pedir ajuda.
Ano passado, 31.187 mulheres sofreram violência física. Houve 67 feminicídios e 104 tentativas. Belo Horizonte registrou o maior número de episódios, com 12% no primeiro semestre de 2019.
Especialistas avaliam que, com a quarentena, há risco de maior incidência. Segundo a promotora de Justiça Patrícia Habkouk, coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), estudos realizados na China apontaram que o número de relatos de violência doméstica duplicaram naquele país durante o período de isolamento social obrigatório.
"O momento de tensão social, as incertezas econômicas, a sobrecarga de trabalho e responsabilidades impostas muitas vezes às mulheres podem ensejar comportamentos controladores e violentos por parte dos homens, uma situação amplamente favorável ao aumento dos casos de violência no Brasil", avalia.
A delegada de polícia chefe da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso, à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância, Isabella Franca Oliveira, concorda: "Na experiencia de outros países que vêm vivendo esse isolamento social, a quarentena demonstra que é possível ter um aumento de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher".
Pollyana Abreu ajuda mulheres por meio das redes sociais. A empreendedora administra na internet a página Não era amor, que nasceu em julho de 2018 para ajudar mulheres que estão ou saíram de relacionamentos abusivos. Segundo ela, para a mulher que é casada ou mora com o parceiro abusador, a casa é o lugar mais perigoso. "E esse perigo aumenta com a quarentena, porque haverá maior contato com esse abusador e acontecerá o escalonamento do ciclo da violência. Essa mulher estará mais isolada socialmente e com menos amparo de sua rede social, como trabalho, estudo, amigas, familiares, diminuindo a possibilidade de pedir ajuda e aumentando o risco".
Os números de ocorrências relacionadas à violência doméstica contra a mulher que indicariam se houve aumento ainda não foram divulgados pelas autoridades. Para a delegada Isabella, será preciso cautela extra para analisá-los. "A violência pode ter ocorrido ontem, mas ser registrada após a quarentena. Assim como temos casos anteriores ao isolamento social que podem ser registrados agora. Precisamos de cuidado para passar as informações que realmente refletem a realidade", observa
Já a promotora de Justiça Patricia Habkouk chama a atenção para possíveis medidas protetivas. "O ponto aqui a ser abordado é a garantia de acesso que deve ser assegurada a todas as mulheres em situação de violência. O que inclui meios de acesso à Justiça, a mecanismos eficazes de proteção", acrescenta. Ela diz que a própria dificuldade de registro de ocorrência nesse período pode mascarar o total de casos.
Por outro lado, Pollyana, que administra a página Não era amor, sustenta que a busca por informações sobre como ajudar a proteger essas mulheres nesse período de quarentena aumentou a partir da veiculação de abordagens da imprensa.
O ciclo da violência
Na visão das especialistas, é importante estar em alerta ao ciclo da violência, geralmente associado a uma sequência de eventos de agressão entre parceiros íntimos, em que o ambiente passa a girar em torno de três fases: tensão, violência e reconciliação.A promotora de Justiça explica que, na primeira fase, ocorrem episódios de violência psicológica, incluindo desrespeito, intimidações, abusos verbais, constrangimento público. Na segunda, a da violência aguda ou explosão, há as agressões físicas e verbais mais graves. Já na terceira, ocorre a reconciliação: o homem se arrepende e promete mudar.
"O mais comum é que esse ciclo se repita, com intensidade cada vez maior e a intervalos cada vez menores, terminando em lesões graves ou no próprio feminicídio", completa.
E onde pedir ajuda?
O primeiro desafio, para ela, é reconhecer os sinais e se posicionar diante deles. "Vivemos em uma sociedade em que os comportamentos atribuídos a homens e mulheres ainda são muito romantizados, se espera dos homens o papel de provedores, de responsáveis pela família, enquanto às mulheres caberia o cuidado. 'Os homens mandam, as mulheres devem obedecer' e isso naturaliza a violência", critica a promotora.Uma das saídas é buscar as medidas protetivas de urgências previstas na Lei Maria da Penha. A delegada Isabella Oliveira diz que, no âmbito policial, os serviços mais urgentes não foram interrompidos durante o isolamento social. Mas ocorreu um planejamento para a execução dos trabalhos de forma a reduzir o fluxo de pessoas nas unidades policiais, por causa da ameaça do coronavírus. Neste momento, a recomendação principal para denúncias é optar por serviços on-line ou telefônicos, e se dirijir a uma unidade policial apenas em casos imprescindíveis.
"A delegacia está 24 horas recebendo ocorrências graves, além de casos de abrigamento em situação de violência. Nos demais casos, para evitar a circulação de número grande de pessoas dentro da unidade policial, é feito um agendamento. Policial faz contato e tomamos as medidas cabíveis, inclusive o pedido de medida protetiva", disse a delegada.
Como ajudar?
Em caso de violência contra a mulher, a orientação inicial é discar 190 ou, nas situações que já tenham ocorrido, 180. Também é possível entrar em contato por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher CAO-VD, pelo e-mail caovd@mpmg.mp.br.
Sendo possível, uma das recomendações é evitar a quarentena ao lado de potenciais agressores. A rede de vizinhos também pode ajudar. "As primeiras pessoas que poderão ajudar essas mulheres são os vizinhos. Chamando a polícia, intervindo tocando interfone ou campainha, solicitando ajuda do síndico", sugere Pollyana Abreu, administradora da página Não era amor. E o isolamento social diante da pandemia, observa, não é o responsável por esse tipo de ocorrência. "A quarentena somente agrava algo que já existia".
Dicas à vítima que sofre violência em casa*
- Compartilhe com amigas, pessoas próximas ou vizinhas sobre possíveis agressões;
- Combine um sinal, em caso de emergência. Pode ser até um emoji no celular;
- Escreva quando não puder falar;
- Mantenha o celular sempre carregado e conectado à internet;
- Se tiver carro, deixar com gasolina, as chaves na ignição e estacionado de forma fácil para sair da garagem.
Fonte: *Não Era Amor