Com o isolamento social sob ataque, num momento em que a população, em quarentena há mais de duas semanas, começa a demonstrar sinais de fadiga e tédio, esta será uma semana decisiva para o enfrentamento da pandemia da COVID-19. “Os bons resultados do isolamento social acabam minando o próprio isolamento social: você não vê os hospitais lotados, não vê as UTIs sobrecarregadas, todas aquelas situações que não ocorrem exatamente por causa do isolamento. Aí as pessoas começam a sair às ruas, a comprar os discursos negacionistas de quem desdenha da pandemia e tudo aquilo que mais se temia começará a acontecer. Alguns me perguntam: “Será que no Brasil será diferente do que aconteceu nos outros países?”. Eu respondo com outra pergunta: “Por que seria?”.
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“Há vários estudos, inclusive no Brasil, buscando aferir o seu potencial. O problema é que se a rede hospitalar entrar em colapso por excesso de demanda, a maioria dos pacientes não terá atendimento. As pessoas morrerão não apenas da COVID-19, mas também de outras doenças que necessitam de atendimento hospitalar imediato. A grande questão é como organizar a fila dos casos mais complicados (em torno de 20%) nos serviços de média e alta complexidade, coisa que o debate em torno da cloroquina busca subverter”, diz ele. Confira entrevista exclusiva de Paes ao Estado de Minas.
O que a experiência internacional com a pandemia ensina ao Brasil?
Há três alternativas concomitantes de enfrentamento de um vírus no início. O controle dos infectados, e para isso precisa de exames massivos, o que nunca tivemos no Brasil. O isolamento social como forma de retardar a disseminação e possibilitar o atendimento nos hospitais; e a preparação dos hospitais para a sobrecarga. O isolamento social é um processo de longo prazo. Wuhan fez isolamento por 72 dias e levou duas semanas para suspender progressivamente o isolamento após a não detecção de casos novos. A China fez a detecção em dezembro. O Brasil demorou, mas quando reagiu, o fez corretamente, estabelecendo o isolamento social. Mas essa é uma medida que demanda tempo e planejamento. A pandemia tem impacto em todas as esferas. E como afeta a saúde? A disseminação é tão rápida, é tão grande a demanda sobre o sistema de saúde, que o incapacita para atendimento dos outros problemas. Além disso, parte da força de trabalho dos hospitais adoece. Em Bérgamo (Itália), foi tão dramático que foram mobilizados médicos de outros países – além de chamados outros profissionais com menor treino em saúde, como bombeiros. Assim, quando há sobredemanda nos hospitais, muitos vão morrer não apenas pela COVID 19, mas por outras doenças que necessitariam de atendimento, que não estará disponível por causa da lotação dos hospitais. Por isso começam a morrer pessoas de apendicite, de parto, de infarto e outros males. Um estudo realizado na cidade italiana de Nembro indicou que a cada quatro mortes por COVID-19, havia mais de seis por outras causas.
Sob a perspectiva psicológica e de engajamento, como está a dinâmica do isolamento social no Brasil?
Os bons resultados do isolamento social acabam minando o próprio isolamento social: você não vê hospitais lotados, não vê UTIs sobrecarregadas, todas as situações que não ocorrem exatamente por causa do isolamento. Aí, as pessoas começam a sair às ruas, a comprar os discursos negacionistas de quem desdenha a pandemia e tudo que mais se temia começará a acontecer. Algumas pessoas me perguntam: “Será que no Brasil será diferente do que aconteceu nos outros países?”. Eu respondo: “Por que seria?”. No início do isolamento social, havia muita motivação. Esse primeiro momento vem em conjunto com solidariedade, boa vontade, vontade de fazer o que todos estão fazendo no mundo. Depois de um tempo, as pessoas começam a mostrar cansaço, fadiga, tédio, vão exaurindo a sua capacidade de lidar com a restrição. No Brasil, as controvérsias políticas e divergências desde o primeiro momento tornam a mobilização mais difícil. Estamos caminhando para o pior dos mundos: sem adesão ao isolamento social, vamos perder vidas em decorrência da sobrecarga do sistema de saúde e não vamos preservar os empregos.
Que estratégias o senhor acredita podem ser adotadas para evitar desmobilização do isolamento social?
São várias dimensões envolvidas. É um problema global. Vamos ter economias que vão encolher. As pessoas que têm pequeno negócio têm de ter alternativa. Mas para isso são necessárias políticas econômicas adequadas. E governo precisa mudar a mentalidade, parar de ficar regateando diante dessa tragédia. O Congresso melhorou a proposta do benefício emergencial proposto pelo governo de R$ 200 para R$ 600. Mas, pela mensuração do IBGE na PNAD Contínua, as pessoas do mercado informal recebem mais de R$ 1.400 por mês. Isso significa que as pessoas vão buscar essa diferença com alternativas que as exponham à infecção. O reforço à proteção social está muito aquém do que o país pode fazer. Este é um ponto. Também o pacote econômico para o enfrentamento da crise é tímido. São necessárias medidas de impacto. Estados e municípios tentam fazer os seus pacotes. Mas falta no âmbito federal um conjunto de medidas para nos proteger da crise e nos indicar um caminho que nos ajude na recuperação econômica. Neste momento, o Brasil pode mobilizar municípios para o isolamento social e, enquanto isso, trabalhar na rede hospitalar de maior complexidade. Imagine BH, se não tiver isolamento social intenso para reduzir o ritmo da disseminação da doença, o que vai acontecer? Os grandes centros urbanos vão ter de absorver demanda do interior. Vai haver sobrecarga e pessoas vão morrer. E quem mora na capital, apesar de fazer o isolamento, vai sentir.
Alguns segmentos do empresariado e mesmo autônomos, ainda sem acesso a um benefício e sem ter como se manter, pressionam pela retomada das atividades.
Há nítida pressão sobre o setor saúde para que “liberem” os trabalhadores para voltar ao trabalho. Não adianta pedir ao vírus que pegue leve com a força de trabalho. Ele faz o que é da sua natureza fazer. O país precisa mobilizar o que tem de melhor, porque o que tem de pior vem de graça. O que temos de melhor? Atenção primária capilarizada do SUS e do setor privado. Temos também competência na área de vigilância epidemiológica, organizada, consolidada. Para localizar as pessoas e promover políticas de proteção social, temos duas plataformas: o Bolsa-Família, ligada ao Ministério da Cidadania; e a outra é o INSS, que tem a plataforma que paga o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Ambas funcionam bem, já foram usadas para outros tipos de transferência, que não o Bolsa-Família. Outra coisa que o Brasil tem é a descentralização das políticas públicas, o que permite que municípios tenham autonomia na resolução de problemas. Isso é algo positivo, pois como o Brasil é muito individualista, o fato de ter autonomia no nível municipal confere mais rapidez às decisões.
E quais são as dificuldades para o enfrentamento da pandemia?
O Brasil tem déficits históricos em relação aos atendimentos de alta complexidade e de financiamento da saúde: há um processo de sucateamento dos hospitais públicos e escolas universitárias. Além disso, perdemos muito da industrialização dos produtos na área da saúde do Brasil. Isso aconteceu em vários lugares no mundo e com muita força no Brasil. Somam-se a esses problemas antigos os novos problemas. Um processo de narrativas de deslegitimação do SUS e do setor público, o questionamento e esforços para a desqualificação da própria ciência. Esses são os déficits que caem em nossa cabeça. Além de tudo isso, há um problema de coordenação decorrente de dificuldades políticas, que no Brasil tem raízes. Todo esse processo que levou à deslegitimação da política e dos políticos, permitiu o crescimento de desconfiança exacerbada em relação a instituições como o Parlamento, o Judiciário, os partidos políticos. Há pessoas que continuam agindo para deslegitimá-los, e, ao fazer isso, enfraquecemos os principais instrumentos regulatórios de uma sociedade organizada. Quando vem um desastre desse tamanho, todas essas questões se revelam desagregadoras. É preciso que o governo federal se entenda em ação coordenada entre os seus próprios órgãos, com o Legislativo e o Judiciário para que construam atuação convergente, em união com estados e municípios. Por causa dessas dificuldades, temos perdido oportunidades de mobilizar o que de melhor temos.
Muito se tem falado na cloroquina. Como está a evolução da pesquisa para o tratamento da COVID-19?
A cloroquina está sendo anunciada como se fosse bala mágica, uma pílula do dia seguinte, em caso de alguém sair para o trabalho e adoecer em decorrência dessa exposição. Com isso, o debate em torno do medicamento não se processa em torno de sua eficácia terapêutica, cujo conhecimento ainda é escasso. A droga é uma entre outras que têm sido usadas para o tratamento da doença. Há vários estudos, inclusive no Brasil, buscando aferir o seu potencial. O problema é que se a rede hospitalar entrar em colapso por excesso de demanda, a maioria dos pacientes nem vai ter atendimento. As pessoas morrerão não apenas de COVID-19, mas também por outras doenças que necessitam de atendimento hospitalar imediato. A grande questão é como organizar a fila dos casos mais complicados (em torno de 20%) nos serviços de média e alta complexidade, coisa que o debate em torno da cloroquina busca subverter.
Em vários países, como Reino Unido, EUA e própria Itália, os governantes demoraram a adotar medidas de isolamento social. Por que a demora?
No Reino Unido, o governo de Boris Johnson começou hesitante, com a teoria da imunidade de rebanho, ou seja, deixa que todos peguem a doença e daí a imunidade. Mas houve resposta social ignorando o governo, que precisou se reposicionar. São posturas que vão um pouco na direção da negação da ciência, e certa convicção muito pessoal, de que todos estão errados, e seria histeria coletiva. Isso no fundo é uma atitude dissociativa: a realidade bate na cara e a negação continua. Além disso, a política contemporânea passou a ter certo elemento individualista, desafiador, em que se desafiam cânones para ganhar certo prestígio social com isso. Ocorre que colocar um youtuber provocador em evidência não combina com um dirigente de nação. Aqueles que dirigem nações podem provocar tragédias com essa postura. Tem consequências muito graves. Passamos, nesta semana, por um momento crucial em que é preciso buscar novas articulações, renovar as energias, maximizar as mensagens que são adequadas ao isolamento social, necessário neste momento. Há uma escolha a ser feita. Podemos sair desta crise em melhor situação do que estamos. Mas podemos também sair muito pior do que estamos. As pessoas estão no geral buscando fazer a sua parte. Nunca tivemos tanta informação sobre uma doença como esta, em tão pouco tempo. Apesar de não sabermos o fundamental. Isso é interessante, pois vai deslocar a concepção de como o mundo funciona e se queremos buscar a saída pela produção de conhecimento e de tecnologia. O que de pior pode acontecer é não aproveitarmos essa crise para enfrentar problemas estruturais – investimento na saúde, desenvolvimento de novas competências e o setor comercial para lidar com a saúde –, reaprendera a ter confiança nas instituições.