Saulo é um nome inventado, neste texto para um homem real, morador do interior mineiro, pai de dois filhos, trabalhador autônomo, sempre com uma pasta na mão. Ele diz que é feliz, mas desde a semana passada começou a se sentir asfixiado, um nó na garganta estranho, muito mais apertado do que o da gravata que usava diariamente, antes de entrar em isolamento domiciliar.
A todo instante, se perguntava, zanzando de um lado para outro: "Quando vai terminar essa pandemia, essa pan-demência, quando terei de novo as rédeas da minha vida?". O nervosismo foi se irradiando pelos quartos, pela sala e pelo quintal, chegando a extremos."Tenho que dar um fim a isso. Não posso mais viver nessa situação, deve haver uma saída além da porta."
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Tomou um café, mordeu o pão de queijo recém-saído do forno. Saiu para o quintal. Pegou o regador, aguou as samambaias, fez um cafuné no cachorro, ouviu o canto dos pássaros. "Que beleza! Que maravilha! Bom escutar esse som logo cedo."
Mas, de repente, como se estivesse na estrada de Damasco tal qual Saulo de Tarso, depois Paulo, o mineiro se sentiu iluminado. Foi tomado por asas da imaginação que batiam fortes às costas e por uma clareza de ideias que abria a cabeça. "Será isso mesmo que devo fazer? Dar um fim a esse sofrimento? Terminar com essa pressão, abrir as grades para o mundo?"
Rodou o quintal, colheu um ovo no ninho da galinha carijó, olhou para o céu sem nuvens. Depois seguiu para o viveiro com seus 46 passarinhos, curiosamente um para cada ano da sua vida. Viveiro... viver... Estavam lá o curió que foi do falecido pai, os canarinhos, o bicudo e outros da fauna brasileira comprados de forma clandestina. Cada pássaro contava um pouco da história pessoal e familiar.
Sem pensar duas vezes, Saulo abriu a porta do viveiro e deixou que as aves saíssem do seu cativeiro, do seu isolamento, dos anos de quarentena. Por um segundo, imaginou-se lá dentro, num poleiro, privado do direito de voar, aprisionado.
De início, algumas aves ficaram indecisas. Depois, voaram para o pé de amora. Um canarinho precisou de ajuda. E Saulo o lançou com ternura em direção à bananeira. Como mora distante do centro urbano, sem casas perto, ficou seguro quanto à alimentação e água para os pássaros.
Aos poucos, o homem percebeu que o nó na garganta desapertava. Ficou mais leve, de um jeito que havia muito tempo desconhecia. Sorriu para a natureza e para o viveiro agora vazio. E disse baixinho: "Coitados desses passarinhos. Se eu estava me sentindo mal, imagino eles".
Respirou fundo na manhã do dia em que completava 46 anos, tirou o cachorro da coleira, colocou a máscara cirúrgica e saiu para dar uma volta rápida, só para espairecer. Viu ali que começava um novo tempo, talvez até mais tranquilo, apenas com uma pontinha de saudade.
Recado ao leitor: Quando ouvi essa história, na voz do seu protagonista, pensei em fazer uma matéria, mas ele ficou com receio por ter criado os pássaros de forma ilegal. Não quer mais mexer com isso, só pensa mesmo em ficar calmo na quarentena. Em casa.