Longe dos olhos dos defensores (aqueles que os têm!), frágeis, inocentes, indefesos e dependentes, as crianças e adolescentes fazem parte de um grupo dos que sofrem ainda mais com a violência doméstica diante da quarentena e do isolamento social impostos pela pandemia do novo coronavírus. Mulheres e idosos também enfrentam o mesmo horror. É preciso estar sensível a todos; no entanto, os menores em formação são acometidos de maneira cruel, além do sofrimento e da dor. Eles têm a autoestima abalada e o desenvolvimento afetado diante da impunidade e da exposição a agressões prolongadas praticadas justamente por seus responsáveis e cuidadores."Crianças e os adolescentes são, muitas vezes, vistos pelos adultos violentos como suas 'propriedades', as quais poderão ser utilizadas como quiserem, inclusive como 'saco de pancada'"
Hugo Monteiro Ferreira, escritor e professor da UFRP
Hugo Monteiro Ferreira, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRP), coordenador do Núcleo do Cuidado Humano da mesma instituição, líder do grupo de estudos transdisciplinares da infância e da juventude e também escritor – é autor do livro Geração do quarto: quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar – , alerta que “as crianças e os adolescentes, ao longo de sua história, são vítimas de violência ou simbólica ou psicológica ou física, basta que analisemos a emergência social dessas pessoas. É uma gente que não sabe, de modo geral, se proteger e, desprotegida, fica à mercê dos desmandos dos adultos. Durante o isolamento social, a situação de violência se agrava muito, porque as crianças e os adolescentes são, muitas vezes, vistos pelos adultos violentos como suas 'propriedades', as quais poderão ser utilizadas como quiserem, inclusive como 'saco de pancada', 'pessoa na qual descarrego a minha raiva'.”
Para o professor, o isolamento social tem evidenciado e aumentado essa natureza de violência porque é como se, dentro de casa, longe dos olhos de todos, sem o contato diário com a escola, os meninos e as meninas não tivessem ninguém por eles. “Sempre que há catástrofes, as crianças e os adolescentes são as vítimas mais atingidas, porque são vistas como 'vulneráveis', que não 'saberão se proteger'. Entre 2014 e 2016, na epidemia do vírus ebola, o Unicef apresentou relatório que evidenciava o aumento grave de violência infradoméstica contra meninos e, mais expressivamente, contra meninas. Com a pandemia da COVID-19, estamos vendo a necessidade de reforçar o sistema de garantia de seus direitos e que não permitamos a intensificação da vulnerabilização dessas pessoas.”
Hugo enfatiza que, além de ações individuais, é fundamental que o Estado cumpra sua obrigação, prevista na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), protegendo crianças e adolescentes: “É preciso que o Estado tenha em seus programas de enfrentamento à pandemia ações efetivas de proteção e que deixe explícito para os violentadores (as) que os menores não estão sozinhos e que quem os violentar sofrerá as sanções previstas na legislação”.
O professor afirma ser muito difícil que as crianças, sozinhas, se protejam da violência adulta: “De modo geral, não conseguem e se sentem, inclusive, culpadas pela violência que sofrem. A violência infradoméstica vem do adulto que, em tese, deveria protegê-la, então a criança pensa 'se ele faz isso comigo, é porque devo ter feito alguma coisa errada'. É uma violência covarde. A depender da situação, crianças maiores, sobremaneira adolescentes, podem denunciar seus agressores para um adulto que demonstre cuidado verdadeiro para com eles. Nesses casos, é importante que os orientem para que peçam ajuda a alguém mais próximo (avós, tios, vizinhos)”.
Hugo conta que no Canal Futura há uma série, da qual foi consultor, chamada Que corpo é esse?. A narrativa ajuda meninos e meninas a protegerem seu corpo diante da violência sexual, por exemplo, e de outras formas de violência.
A recomendação é que, ao perceberem numa dada casa crianças e/ou adolescentes sendo vítimas de violência, vizinhos denunciem por meio do número 100, da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do governo federal, e que tem por finalidade receber denúncias relativas a violência sexual contra crianças e adolescentes. “É importante que a denúncia seja feita sem pôr ainda mais em risco a vida das vítimas. A denúncia pode ser anônima. Além disso, é possível ligar para uma Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DPCA) do seu município ou estado. De modo mais direto, acionar o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (CEDCA) do estado e pedir ajuda. É muito importante que essas ações sejam rápidas e afetivas.”
Ele reforça que o Estado pode até intervir na família, para que essa proteção ocorra: “As autoridades e as instituições têm papel central. É preciso que os governos, como quer a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Unicef, apresentem ações de proteção, evitando ainda mais o agravamento da vulnerabilidade infanto-adolescente. Se a violência for constatada, o sistema de garantia de direitos pode, inclusive, interferir na guarda e no pátrio poder, ou seja, cuidadores violentos podem perder a guarda de crianças e adolescentes molestados de alguma ma- neira. É fundamental que os conselhos tutelares e de direito, cumprindo as funções que lhes competem, sejam acionados e atuem garantindo que a violência seja imediatamente interditada”.
EM CASA E NA ESCOLA No âmbito interno da família, diz o professor, é fundamental deixar evidente que violências contra crianças e adolescentes não serão toleradas em qualquer nível. “Se um membro de uma família tem suspeitas, deve investigar, ouvir, chegar perto, fazer os adultos violentadores entenderem que eles não estão livres para agir como quiserem, que eles estão vigiados. Se, para além das suspeitas, alguém da família tem certeza de que a violência ocorre, não deve pensar duas vezes e proceder à denúncia imediatamente. Não se pode 'negociar'.”
Hugo Monteiro Ferreira concorda que a escola tem papel essencial: “A ausência da rotina escolar é um dos elementos que contribuem para o aumento no índice de violência. Se um professor sabe que há histórico de violência, pode agir em âmbito institucional, comunicando o fato à direção da escola, à Secretaria de Educação, deixando evidente para as famílias que a escola continuará cumprindo suas funções sociais. É relevante que as escolas, públicas ou privadas, não se distanciem das crianças e dos adolescentes durante o isolamento social. Professores, orientados pelas instituições, podem ligar, mandar mensagens, falar com os responsáveis, demonstrar que estão atentos. Se for necessário, pedir a intervenção dos órgãos competentes”.
Ele prevê que toda violência sistemática contra crianças e adolescentes causará traumas e as consequências psicológicas serão vistas pós-pandemia.
“É possível que tenham adoecimento emocional, desenvolvendo comportamentos autodestrutivos ou mesmo transtornos psicopatológicos. O 'medo patológico' e todas as suas consequências devem ser demonstrados durante a pandemia. Experiências violentas na vida de crianças e adolescentes causam sérios problemas tanto em nível físico quanto mental. Se não agirmos de modo efetivo, certamente, pós-pandemia, teremos quadros sociais, no que tange ao adoecimento emocional e mental, ainda mais assustadores do que aqueles que já sinalizei com a pesquisa Geração do Quarto”.
Dados assustadores
- No Brasil, todos os dias, são notificados, em média, 233 agressões de diferentes tipos (física, psicológica e tortura) contra crianças e adolescentes de até 19 anos. Boa parte tem como autores pessoas do círculo familiar e de convivência das vítimas.
- Ao analisar a série histórica, de 2009 a 2017 (dados mais recentes), o volume de agressões chega a 471.178 registros.
- Entre 2009 e 2014 (último ano com informações disponíveis), houve 35.855 encaminhamentos para hospitalização e 3.296 óbitos. Como geradores, registros de violências física e psicológica ou de tortura.
- Pelos dados, estão em situação de maior risco as faixas etárias de 10 a 14 anos (20.773 ocorrências em 2017) e de 15 a 19 anos (44.203 notificações). Total de 66.976 casos – em 2009, tais segmentos somaram 9.309.
- Em 2017, o Unicef informou que cerca de 300 milhões de crianças, de 2 a 4 anos, em todo mundo, são diariamente submetidas a maus-tratos por cuidadores adultos.
Fonte: Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
Palavra de especialista
Ana Maria Costa da Silva Lopes,
presidente do Departamento do Comportamento e Desenvolvimento da Sociedade Mineira de Pediatria
Violência vira uma válvula de escape
“A violência doméstica ocorre por causa da dificuldade da estrutura familiar. Diante da quarentena, prevejo uma situação em cascata. O pai, em grande número com trabalho informal, perde o emprego, a renda e sofre pelo que chamamos de violência estrutural do sistema socioeconômico em que está inserido. O que vai repercutir no âmbito familiar. A violência vira uma válvula de escape, infelizmente, ainda pouco questionada pela sociedade porque existe a relação de poder. Além disso, com o aumento do número de famílias mononucleares, a incidência da violência contra a criança e o adolescente pode ser maior. Se há parceiro, um pode vigiar o outro, intervir. Com a mudança de dinâmica social, a impossibilidade da mobilidade urbana, o adolescente, que antes escapava do ambiente de casa para o aconchego dos amigos ou outros familiares confrontado com a agressão, hoje não tem para onde ir. E se pensarmos nos menos favorecidos, no confinamento em espaços pequenos, além da violência já citada, ainda há risco de acidentes domésticos, também graves. Os vizinhos podem construir uma rede de solidariedade. Se perceberem uma situação de choro e de gritos, é importante alertar, lembrando da possibilidade de fazer uma denúncia sob anonimato, seja na Polícia Militar (190) ou no Dique Denúncia (181). A denúncia é importante porque pode interferir numa situação de violência e mudar um destino, que pode vir a ter um fim trágico.”
Saiba mais
É lei
O Brasil, entre 60 países segundo o Fundo das Nações Unidas (Unicef), tem uma legislação que proíbe o castigo físico. A Lei da Palmada (Lei nº 13.010/2014), também conhecida como Lei Menino Bernardo, foi aprovada em 2014. Apenas 9% das crianças com menos de 5 anos em todo o mundo vivem nesses países, o que deixa outros 607 milhões sem proteção legal contra esse tipo de violência.