Gripe espanhola, mexicana, francesa, alemã, russa e africana. O que não faltam na história da humanidade são doenças atribuídas a países e regiões. Desta vez, para somar à conta, o mundo ganha mais uma: a gripe chinesa ou, para os menos radicais, COVID-19. Atualmente, em meio a uma pandemia que já matou mais de 200 mil seres humanos, pessoas de todo o mundo insistem em atribuir ao novo coronavírus uma nacionalidade. E na história há vários exemplos semelhantes. Ao longo dos séculos, vírus se tornaram peças de disputas políticas e motivações para discursos de ódio. O Estado de Minas analisou jornais de 1918, época da chamada 'gripe espanhola', e conversou com estudiosos para entender o porquê dessa obsessão pelo estrangeiro.
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Com ânimos ainda mais exaltados diante da guerra, jornalistas e escritores da época faziam questão de levantar a hipótese de o vírus ter sido criado pela Alemanha, que, em 1918, já estava mais pra lá do que pra cá no conflito. Em 24 de setembro do mesmo ano, o jornal de Juiz de Fora O Pharol noticiava: “A mysteriosa influenza hespanhola – que afinal bem pode ser mais um infame produto da infinita barbaria allemã – já matou em Dakar cincoenta e tantos marinheiros e officiaes da esquadra brazileira enviada a combater os submarinos allemães (sic)”.
Quase um mês depois, em 20 de outubro, o jornal atacava a Prússia, extinto estado-nação que abrangia território hoje belga, tcheco, dinamarquês, alemão, lituano, holandês, polonês, russo e suíço. “A malvada que por ahi anda, talvez com apoio de germanophilos que entendem que habitamos os domínios do Atilla actual, é prussiana. Sobre ella, pois, o anathema (anátema) redobrado da civilização (sic)”.
Conforme notícia veiculada também no O Pharol, jornais americanos chegaram a divulgar que os Estados Unidos sabiam que “agentes allemães, desembarcados de submarinos, foram encarregados de espalhar os germens da grippe hespanhola, disseminando-os pelos theatros e outros pontos de reunião da America (sic).”
Mas em meio a tantas atribuições sem nexo e sem prova, ainda havia tempo para humor. Em uma coluna chamada “Em Cinco Minutos…”, um jornalista da época ressaltava as belezas e as grandiosidades da Espanha e alertava: “Na gloriósa terra de Cervantes, é sabido, tudo tem proporção sem similar em parte alguma…. se é uma flor, seu perfume é tão forte que põe um mortal adormecido por mais de vinte e quatro horas; se é uma doença, uma simples dor de dente, ou torna côxa sua victima ou mata... uma hespanhola só tem uma competidora: outra hespanhola”.
A necessidade de atribuir a gripe a uma nacionalidade parou em Portugal e, por incrível que pareça, também nos Estados Unidos. No país europeu, a gripe é chamada de pneumónica. Já nos EUA, há quem a chame de “Spanish flu”, mas o nome correto é “flu pandemic”.
“Vírus chinês”
De fato, há estudos e teorias que apontam que o governo de Xi Jinping possa ter segurado informações sobre o tamanho real da situação da COVID-19 no país ou, até mesmo, falhado na condução do combate à doença. No entanto, em muitas ocasiões, os ataques passam da linha crítica e se tornam xenofóbicos, como já relatado por estrangeiros ao redor do mundo.
Em várias ocasiões, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se referiu à pandemia como “vírus chinês”, creditando a doença ao país que primeiro registrou o contágio. Associações semelhantes foram feitas pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) e pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Em meio aos ataques, a Organização Mundial da Saúde faz questão de excluir qualquer referência a lugares, quando se trata do nome da doença.
“No início do coronavírus, fizemos referência à gripe como se fosse a 'gripe da China' ou a 'gripe de Wuhan'. Mas a própria OMS decidiu que não temos que nomear esse tipo de epidemia ao nome do lugar, justamente para não fazermos essa associação entre uma determinada comunidade com a doença”, explica a historiadora Anny Torres. Ela também cita o exemplo da gripe suína, que inicialmente foi chamada de gripe do México.
No século 16, a sífilis foi creditada pelos europeus como uma doença francesa, enquanto na França, ela era tratada como italiana.
Obsessão humana
Mas, afinal, porque tendemos a associar os vírus e pandemias a nacionalidades? De acordo com o doutor em psicologia social e professor da Universidade Federal de Minas Gerais Cláudio Paixão, isso tudo está relacionado ao que a psicologia chama de projeção. Ou seja, atribuímos o erro ao outro, para não nos responsabilizarmos por nada.
“No caso da pandemia, em que o vírus viaja de um lugar para o outro, a tendência é que as pessoas façam isso. Aquela pessoa que vem de fora é vista como uma ameaça. Isso para a economia psíquica é fácil, eu acuso alguém e aí me livro do problema, a responsabilidade é do outro”, comenta o professor.
O psicólogo ainda alerta para o que vem depois do vírus. Isso porque, segundo ele, momentos como este são bastante propícios a polarizações. “A tendência do vírus é promover uma retribalização, nós estamos formando pequenas tribos e com muita restrição à proximidade. Imagina um desconhecido que entra no seu prédio, alguém que tem um estereótipo diferente do seu. A ameaça que é representada por alguém que vem de fora acaba sendo potencializada nessa situação”, explica.
Informação e autoconsciência
Por mais que essa ameaça primária seja algo normal do comportamento humano, é necessário refutar essa conduta. Em um mundo tão globalizado como o atual, práticas xenofóbicas estão longe de ser aceitáveis e devem ser rechaçadas toda vez que aparecerem. Conforme explica Paixão, há duas maneiras de lutar contra esse sentimento de repugnância: informar e conscientizar.
“É importante que tenhamos uma autoconsciência e uma percepção muito grande do que é que a gente sente e do que temos medo para aprender a trabalhar com essas questões. Uma coisa é eu ter medo de me contaminar, mas a outra é responsabilizar o outro ou torná-lo uma ameaça. O outro método é a informação: no caso do coronavírus, é importante saber que ele teve origem naquela região, mas que na realidade os chineses também são vítimas. É um caminho racional”, finaliza.
*Estagiário sob supervisão do editor Álvaro Duarte
*Estagiário sob supervisão do editor Álvaro Duarte