Jornal Estado de Minas

Pandemia representa risco extra para cardiopatas

Sinais vitais: unidades precisam manter alas separadas para receber casos suspeitos de COVID-19 e outros pacientes (foto: SEBASTIEN BOZON %u2013 AFP)
A pandemia do novo coronavírus fez surgir diversos questionamentos sobre a saúde pública. Há leitos suficientes? E respiradores? O isolamento social é a melhor medida? Mas, para além do tratamento dos diagnosticados com a COVID-19, a crise mundial criou um problema para quem sofre de outras doenças e tem necessidade de recorrer a atendimento hospitalar, mas não o faz por receio de se contaminar com a virose que se alastra pelo mundo. E uma das parcelas mais vulneráveis desse grupo são os cardiopatas, portadores de doenças em que o tempo de socorro, nos casos graves, é fator determinante entre a vida e a morte. Esses pacientes são também especialmente suscetíveis a desenvolver casos graves de infecção pela nova doença, e ainda têm preocupação extra com os efeitos colaterais de uma das drogas em teste para tratamento, a cloroquina.



Números da Secretaria de Estado de Saúde mostram que doenças cardíacas são as mais comuns em casos de mortes pela COVID-19 no momento. Para o médico Caio Ribeiro, coordenador do setor de Cardiologia do Hospital Lifecenter, a redução na procura dos cardiopatas por atendimento médico no Brasil, apesar de não indicada em casos de sintomas mais graves, repete o que ocorreu em outros países. “Houve uma diminuição global de busca pelos pronto-atendimentos. Isso também se refletiu em queda da procura dos pacientes cardiológicos, inclusive dos mais graves”, afirma.

Segundo o médico, a situação preocupa, porque as patologias continuam existindo e exigindo cuidados. “As doenças cardíacas não entram em ‘quarentena’. Nosso receio é que essas pessoas estejam ficando em casa com sintomas que podem ameaçar a vida”, alerta o profissional da unidade hospitalar localizada na Avenida do Contorno, no Bairro Funcionários, Região Centro-Sul de Belo Horizonte.

 Mas, quando procurar o pronto-atendimento? Alguns sintomas, no caso das doenças cardiovasculares, são preponderantes. Os sinais são conhecidos de portadores dessas doenças: dor no peito, palpitações (coração acelerado ou fora do ritmo), desmaio e falta de ar. “As indicações são iguais. As pessoas que têm qualquer manifestação cardiológica importante, que habitualmente já era motivo de ir ao pronto-socorro, devem continuar procurando cuidados médicos”, pontua o infectologista e coordenador de uma das UTIs do Lifecenter, Guilherme Lima, de 36 anos.


SEPARAÇÃO E SEGURANÇA 

Mas o médico destaca a importância de as unidades de saúde terem fluxos separados para receber os pacientes com casos suspeitos ou confirmados da COVID-19 e os demais enfermos. No caso do hospital da Região Centro-Sul da cidade, os quatro setores são separados: a enfermaria, o pronto-atendimento, o bloco cirúrgico e as UTIs. Tal condição procura garantir a segurança de quem trabalha no local e também de quem procura apoio médico.

 Apesar de não negligenciar a busca por socorro não ser a atitude recomendada, o temor dos portadores de doenças cardiovasculares com a COVID-19 se explica por números. Até o último dia 23, dos 51 mortos pela doença em Minas Gerais, 37 apresentavam comorbidades ligadas a enfermidades do sistema cardíaco, entre cardiopatias e hipertensão arterial.

Pé atrás com medicamento

Em meio à necessidade cada vez maior da definição de um tratamento efetivo contra a COVID-19, um dos medicamentos mais presentes na discussão é a cloroquina. O remédio é usado no tratamento e profilaxia da malária e para parte da área médica, inclusive para o Ministério da Saúde brasileiro, poderia surtir efeitos no combate à infecção pelo novo coronavírus. Conforme protocolo do governo federal, o fármaco ser usado em contaminados pelo novo coronavírus, inclusive precocemente. Porém, há quem critique os efeitos que a droga pode causar no doente, incluindo riscos para o coração.



“A cloroquina tem sido usada no Brasil e no exterior com base em alguns estudos que mostraram benefício para o paciente que enfrenta a COVID-19. Contudo, à medida que novas pesquisas vão saindo, inclusive nos Estados Unidos, esse benefício tem sido colocado em xeque. Não se tem certeza absoluta, mas em casos graves a cloroquina tem sido usada na tentativa de resgatar o paciente”, afirma o cardiologista Caio Ribeiro.

De acordo com ele, o principal problema do uso da droga é que ela pode causar arritmias (alterações nos batimentos do coração) graves, até mesmo fatais. Ribeiro alerta sobre a prescrição do medicamento em centros de saúde. “Nos casos leves e ambulatoriais, esse benefício não é importante. Existem riscos graves, sobretudo quando (a cloroquina é) usada com outros medicamentos. Essas arritmias podem ser muito mais graves que a própria COVID-19”, alertou o especialista, ainda em uma fase na qual o ministério preconizava o uso da substância apenas em quadros graves.

Uso da cloroquina não é consenso entre profissionais, dentro ou fora do país (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)


Doença cardíaca pode pesar mais que a idade


Estudo feito por pesquisadores em Anhui e Pequim, na China, elencou por meio de pontuações os fatores de risco ligados à COVID-19. Na pesquisa, as doenças cardiovasculares tiveram peso superior à idade dos pacientes, mesmo considerando que os idosos tendem a ter quadros mais graves da enfermidade.



Ainda assim, é preciso destacar que inúmeros estudos ainda tentam desvendar os aspectos da COVID-19. Como a doença é nova, os estudos se pautam principalmente por hipóteses. “A gente sabe que o mecanismo, que chamamos de receptor, que o coronavírus usa para entrar na célula do corpo é muito presente no sistema cardiovascular. Mas são hipóteses, a gente não tem confirmação. O que a gente sabe é a questão observacional: as cardiopatias são comorbidades muito presentes, talvez as mais presentes”, afirma o cardiologista Caio Ribeiro, do Lifecenter.

 Os efeitos da doença que assusta o mundo no sistema cardiovascular acontecem em dois quadros clínicos, explicam especialistas. O primeiro deles é a pericardite: o inchaço e irritação da membrana que envolve o coração. Há também casos de miocardite, que é a inflamação do músculo do órgão, responsável por sua contração.

PREOCUPAÇÃO 

Em um caso específico das doenças cardiovasculares, no entanto, a preocupação dos médicos é ainda mais elevada e virou um dos mais recorrentes temas de discussão entre especialistas na área: o tratamento dado a pacientes que enfrentam infartos agudos durante a pandemia do novo coronavírus. Comumente, eles são encaminhados a um procedimento chamado angiosplastia primária. É quando o médico usa um balão para pressionar uma placa que está comprometendo o fluxo de sangue em uma artéria, empurrando-a contra a parede do vaso.



A intervenção dura cerca de 20 minutos, mas traz uma preocupação. Como tudo é feito dentro de uma sala específica para o procedimento, chamada hemodinâmica, caso o paciente tenha suspeita ou confirmação da COVID-19 há risco de contaminação da equipe médica ou até mesmo de um próximo paciente a ser encaminhado ao local. A alternativa é o uso dos fibrinolíticos, medicamentos prescritos para objetivo semelhante, mas com eficácia menor.

“É uma discussão quase que diária das sociedades médicas. A gente tem aprendido muito com as experiências estrangeiras, mas acho que deixar de oferecer um melhor tratamento para o paciente com infarto agudo (angiosplastia primária) é um risco maior que a COVID-19. O que a gente tem que se preparar é para proteger a equipe que vai prestar a assistência”, opina o cardiologista Caio Ribeiro.

 O especialista, no entanto, não descarta o uso dos fibrinolíticos. De acordo com ele, esses medicamentos podem ser usados em últimos casos, por exemplo, quando a sala onde a angiosplastia primária acontece está ocupada ou sendo desinfectada por causa do recebimento de um paciente com suspeita ou confirmação de COVID-19. Nessas situações, o passo imediato é tentar uma transferência para um hospital parceiro, mas quando não há tempo para isso, o especialista opta pelo medicamento. “Em 99% dos casos, a gente vai conseguir usar a sala de hemodinâmica”, garante.