Pilhas de diagnósticos pendentes somados a doentes e mortos sequer testados para a COVID-19 se acumulam em grande subnotificação em Minas Gerais e reverberam no meio acadêmico e clínico por mascararem a gravidade da doença no estado. Levantamento da reportagem do Estado de Minas sobre dados do Ministério da Saúde (MS) e Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) mostra que o quadro mais grave de internação por doenças pulmonares como a infecção pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) já afetou expressivamente mais mineiros que em 2019, com 8.099 doentes neste ano contra 1.024 do mesmo período do ano passado, uma alta de 691%. As mortes saltaram de 116 para 1.088, um aumento de 838% durante a pandemia (confira tabela abaixo).
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A situação é tão grave que uma pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia foi publicada com o título "Subnotificação de mortes pela COVID-19 no segundo estado mais populoso do Brasil" e destaca os mesmos números de mortes pela SRAG. Pelos levantamentos feitos sobre dados oficiais, os pesquisadores encontram uma discrepância de 209,23% de números e evidenciam que um aumento de 648,61% de mortes pela SRAG no período analisado seja, na verdade, um efeito da COVID-19. O estudo também aponta um crescimento de 5,36% dos casos de pneumonia e 5,72% de insuficiência respiratória no estado, que seriam evidências claras de infecções pelo novo coronavírus ainda não diagnosticadas.
A orientação do MS é clara e a coleta de amostra e testagem é indicada para todos os casos de SRAG hospitalizados e todos os óbitos suspeitos. Contudo, mesmo entre os testes, a defasagem de diagnósticos "a confirmar", ou seja, ainda sem resposta, é das piores do país. Dos 3139 casos de doentes com SRAG, 1.385 (44%) ainda aguardam um resultado segundo dados da última semana epidemiológica fechados no MS. Esse resultado coloca Minas Gerais como o 13º estado em diagnósticos não confirmados proporcionais aos realizados.
O desempenho mineiro é ainda pior quando se observa o número de mortos por SRAG testados ante os demais estados da federação. Com 72 diagnósticos pendentes, dos 307 testados com o quadro respiratório grave, um índice de 23,5% que faz o estado ocupar a 19ª posição em relação a testagens pendentes de resultados para óbitos.
O presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, Estevão Urbano Silva, afirma que os números de subnotificação são grandes, bem como testagens feitas de forma equivocada. “Acredito que muitos dos casos ainda sem diagnóstico ocorram devido a exames que não são feitos como indicado e dão negativos. O PCR (exame de laboratório que usa enzimas para detectar a presença do vírus no paciente) é eficiente no início e o exame de sorologia (pesquisa pelos anticorpos) é mais adequado tardiamente. A tendência é que com a chegada recente de mais testes isso possa ser melhor explicado”, afirma o infectologista.
Oficialmente, Minas Gerais ocupa posição de destaque no controle da COVID-19, figurando como o segundo estado com menor taxa de doentes, com 29 casos positivos por 100 mil habitantes e a mesma posição entre os óbitos, registrando 1 morte para cada 100 mil habitantes pela COVID-19, segundo o MS.
Mas a falta de confiança nos dados pendentes e a testagem considerada baixa despertam a desconfiança de que os números estejam defasados. No dia 10 de maio, quando a reportagem do EM trouxe o alerta para números pendentes e baixo volume de exames, o número de mortes por SRAG em Minas Gerais era o 18ª pior, com taxa de confirmação para COVID-19 com 29% de exames pendentes. No caso dos positivos, Minas Gerais era o 17º pior, com 45,5% (quase a metade) dos quadros da síndrome ainda não definidos para a COVID-19 ou outro mal.
Quando se compara o número total de mortos por SRAG de 2019 para 2020 o salto é impressionante. A saúde reúne os dados em semanas epidemiológicas. Considerando que o primeiro caso registrado em Minas Gerais ocorreu na 12ª semana e a última fechada foi a 21ª semana, já são 1.088 mortos pela síndrome contra 116 do mesmo período do ano passado, um índice 838% superior. A quantidade de casos também apresentou um salto expressivo, chegando a 8.099 contra 1.024 do mesmo período, uma alta de 691%.
Referindo-se aos mesmos números mostrados pela reportagem, o epidemiologista e professor de medicina da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Lotufo, declarou que considera preocupantes os índices de Minas Gerais. “Escândalo (a) não inclusão de 1.000 casos de SRAG como COVID-19. Isso ocorre porque não testam nas (Minas) Gerais, de (do governador Romeu) Zema, do (Partido) Novo. Bastante informação, pouca ação, os males da SES-MG. Não adianta descrever sem testagem. A quantidade de mortes por SRAG fora de estatística é muito grande” disse.
O biólogo e divulgador científico Atila Iamarino, que ficou conhecido por ter endossado um levantamento do Imperial College de Londres que dizia que o Brasil poderia ter passado de um milhão de mortes, mas que depois precisou ser revisto, também levantou suspeitas sobre o desempenho mineiro no controle da epidemia. “Sem testes, sem mortes por COVID. Minas Gerais já tem por volta de 1.000 mortes por síndrome respiratória aguda a mais do que o esperado pelos últimos anos. O que será que pode causar essas mortes em meio à pandemia de COVID-19?”, disse.
Aumento inexplicado - A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) declarou que não sabe ainda o que levou à explosão de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e admite que podem se tratar de casos da COVID-19, mas a falta de testes mais uma vez se torna uma barreira. “Neste momento, há inúmeras hipóteses sobre o aumento do número de casos (de SRAG) e este fato pode estar relacionado à maior sensibilidade em notificar casos de SRAG, à circulação de outros vírus sazonais e à circulação da COVID-19 na população mundial. Contudo, a classificação por associação ao (vírus) SARS-CoV-2 só pode ser atribuída por meio de evidência laboratorial ou por evidência clínico epidemiológica de um caso que esteja diretamente vinculado a outro caso, que tenha sido laboratorialmente confirmado”.
A SES-MG destaca que diversas doenças respiratórias podem evoluir com quadro de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), “desde uma asma, bronquite, passando por uma pneumonia, tuberculose, intoxicação exógena, edema agudo de pulmão, câncer, além das gripes e do próprio coronavírus”. A secretaria afirma que os casos graves de SRAG, que tiverem indicações clínicas e epidemiológicas para coronavírus serão testados para a COVID-19. “Em 2020, tivemos um número maior de notificações (da SRAG), mas esse aumento não refletiu linearmente na sobrecarga do sistema público de saúde. Considerando esse universo de pessoas que são testadas, a demanda atual de amostras encaminhadas para o diagnóstico não tem excedido a capacidade laboratorial do Estado de processar os exames. Ressalte-se, contudo, que um dos fatores que, no momento, impede a ampliação da testagem é a alta demanda para aquisição, em contexto de disputa internacional, o que seria necessário para direcionamento dos testes a outros públicos, além daqueles que já têm a coleta determinada pelo protocolo”.
A SES-MG informa ainda que o número de óbitos em Minas Gerais é “relativamente pequeno, em relação a uma pandemia tão grande e o sistema de saúde em Minas está preparado. É necessário compreender também as dificuldades para se realizar a testagem das pessoas diante de um cenário que é de escassez no mundo inteiro”.