A comunidade científica internacional e os meios culturais, especialmente europeus e brasileiros, lembram neste fim de maio os 140 anos da morte do dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), que morou e trabalhou mais de 40 anos em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Estavam programadas exposições e grandes homenagens em memória do naturalista, mas, devido à pandemia do novo coronavírus os eventos foram adiados, tanto nessa cidade como na capital, para 14 de junho de 2021. Nessa data, serão comemorados os 220 anos de nascimento do homem considerado “pai da paleontologia brasileira”.
Antes de tudo, é fundamental saber que o Dr. Lund foi quem encontrou os vestígios do hominídio mais antigo da América Latina, o qual ficou conhecido como o Homem de Lagoa Santa, um “parente” de Luzia, a primeira mulher da América, como entrou para a história. O crânio de Luzia, uma das “vítimas” do incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2 setembro de 2018, foi descoberto na década de 1970, em escavação na Lapa Vermelha, em Pedro Leopoldo, na RMBH, pela arqueóloga francesa Annette Laming Emperaire (1917-1977). “Todas as pesquisas têm como base os estudos do Dr. Lund. No seu rastro, vieram outros estudiosos nos séculos 20 e 21”, explica a arqueóloga Rosângela Albano Silva, coordenadora do Centro de Arqueologia Annette Laming Emperaire (Caale), vinculado à Prefeitura de Lagoa Santa.
Embora se tenham tantas pesquisas e livros sobre o Dr. Lund, como ficou mais conhecido o paleontólogo (especialista em fósseis), há uma surpresa para os mineiros. Ao contrário do que se pensava, os restos mortais dele continuam em Lagoa Santa, e não na Dinamarca. O esclarecimento foi feito recentemente pela historiadora dinamarquesa Birgitte Holten, autora, com Michael Sterll, do livro P W Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa, informa Rosângela.
“O fato de os restos mortais de Dr. Lund permanecerem aqui é muito importante, porque ele escolheu esta terra para viver, desenvolveu seus estudos, e, quando terminou a pesquisa, recebeu os pedidos insistentes da família para que retornasse à Dinamarca. Relutou e decidiu ficar. Assim, manter os restos mortais na cidade de Lagoa Santa é uma forma de não deixar que ele parta jamais”, diz a arqueóloga diante do busto de bronze de Lund, instalado em 1934, e à sombra do frondoso pequizeiro plantado, conforme pesquisas, pelo paleontólogo, falecido perto de completar 79 anos, idade avançada para a época, em 25 de maio de 1880. Vale destacar que uma parceria com a PUC Minas está produzindo mudas para preservação da árvore emblemática.
Rosângela acrescenta que, conforme revelou Birgitte Holten, não há registro de traslado dos ossos de Lund para Copenhague. O túmulo do paleontólogo, no Bairro Brandt, em terreno escolhido por ele mesmo por ser protestante, guarda os restos mortais de outros colaboradores do naturalista, estando sob administração da prefeitura local e tombamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Para lembrar Lund, o Caale vai promover evento fechado no próximo dia 14, das 15h às 17h. Já no período de 18 a 21, em modo virtual, será realizado o 3º Simpósio de Arqueologia de Lagoa Santa "O homem e a Terra: Patrimônio, arqueologia, espeleologia e arte no Carste de Lagoa Santa". A partir de segunda-feira, informações e inscrições estarão disponíveis no site www.lagoasanta.mg.gov.br.
Gênio
Para o professor Castor Cartelle, paleontólogo e curador do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, em BH, Peter Lund foi um gênio. “Considero Lund o iniciador ou ‘pai’, na América do Sul, de três ciências. Na paleontologia, por meio de suas descobertas, deu a conhecer 22 espécies de mamíferos extintos. Considero-o, também, ‘pai’ da arqueologia sul-americana: além das descobertas de esqueletos humanos (hoje conhecidos como ‘Homem de Lagoa Santa’), foi o primeiro a figurar, em trabalho científico, uma pintura rupestre. Finalmente foi ‘pai’ da espeleologia sul-americana ao publicar uma avantajada e poética descrição da Gruta de Maquiné, acompanhada de uma artística topografia. Em Lagoa Santa, escolheu viver, trabalhar e morrer. Brasileiro por opção.” No museu, com memorial dedicado a Lund, há uma arca com fósseis embalados em jornais do século 19, despachada para a Dinamarca por Lund e retornada ao Brasil por doação do Museu de Copenhague, e a cruz original do sepulcro do cientista, cujo recolhimento e substituição por uma réplica foram autorizados pela família.
Homem das grutas
Não seria desrespeitoso dizer que o Dr. Lund era um verdadeiro homem das cavernas, pois fez suas pesquisas em cerca de 800 grutas e cavernas da região cárstica de Lagoa Santa, incluindo a Gruta da Lapinha, um dos atrativos turísticos do Parque Estadual do Sumidouro, administrado pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF). No local, está o Museu Peter Lund, com coleção de fósseis e muitas atividades, em tempos sem pandemia, que encantam principalmente os estudantes. Mas é preciso voltar no tempo e entender melhor essa história, que, sem dúvida alguma, está à espera de um grande filme ou de uma bem produzida série de televisão para maior conhecimento de brasileiros e estrangeiros.
Lagoa Santa tinha apenas 60 casas quando Peter Lund chegou e se embrenhou pelas cavernas e grutas da região cárstica. Causou logo estranhamento entre a população por colecionar ossos que encontrava enterrados nas lapas – uma prática que, para ele, significava desvendar e revelar ao mundo científico a pré-história do país que escolheu para viver e onde permaneceu por 45 anos. Natural de Copenhague, pertencente a uma família de ricos comerciantes de lãs e tecidos e formado na universidade local em medicina e letras, cursos que lhe permitiam trabalhar na área de história natural (botânica e zoologia), Lund se tornou o “pai da paleontologia brasileira” e também foi responsável por trabalhos em geologia, arqueologia e espeleologia.
Tão logo se formou na universidade, Lund publicou dois trabalhos nas áreas de medicina e história natural, recebendo prêmios. Aproveitando que o Brasil havia se tornado, desde 1808, com a vinda da família real, a meca dos viajantes europeus – nos tempos da colônia, Portugal não permitia tais visitas –, ele decidiu conhecer os trópicos. Chegou ao Rio de Janeiro em 1825 e ficou na cidade e arredores durante quatro anos, atuando basicamente como botânico. Falava francês, inglês e, nesse período, aprendeu o português.
De volta à Europa, o jovem Lund passou por vários países, entrou em contato com a comunidade científica internacional, participou de congressos e doou coleções de plantas coletadas no Brasil a museus. Retornou ao Brasil, até que, em 1832, soube da morte da mãe. Voltou a Copenhague, ficou lá por pouco tempo e se despediu da família, decidido a vir de vez para o país. Para tanto, contava com recursos do governo real dinamarquês para custear pesquisas, porém, a maior parte das despesas era paga com recursos familiares
Chegando aqui, visitou vários estados na companhia do botânico alemão Ludwig Riedel e, no ano seguinte, em Curvelo, na Região Central de Minas, manteve o primeiro contato com as cavernas e fósseis brasileiros. Em Curvelo, conheceu o dinamarquês Peter Claussen, interessado em ciência e dono de uma fazenda na qual o visitante ficou hospedado. Depois de uma ida a Ouro Preto, onde Riedel, por problemas de saúde, se despediu do amigo e retornou ao Rio de Janeiro, Lund voltou a Curvelo. No entanto, um tempo depois, resolveu explorar cavernas em outras regiões. Novamente nas trilhas, com ajuda de guias, Lund seguiu o Rio das Velhas, indo parar em Lagoa Santa.
Em Curvelo, Lund havia encontrado o desenhista e ilustrador norueguês Andreas Brandt, um amigo do qual nunca mais se separou. O paleontólogo não se casou nem teve filhos, mas adotou Nereu Cecílio dos Santos, filho de um empregado dele, e lhe deixou herança. Na década de 1920, Nereu escreveu o livro O naturalista, homenageando Lund.
Benfeitor
O caráter generoso do naturalista merece destaque. Em Lagoa Santa, onde morou numa casa doada posteriormente para ser escola, Lund fundou a Banda de Música Santa Cecília, comprou os instrumentos para a corporação e deu aulas. Na quinta-feira, diante da escola, na Praça Lund, três colegas de trabalho conversavam sobre a importância do dinamarquês. “Com ele, nosso patrimônio cultural fica mais rico. Nós o estudamos na escola”, conta Alane Souza, de 27 anos. Para Alexsandra Rodrigues, de 28, Lund dá mais visibilidade a Lagoa Santa, enquanto Graciele Bruna Lopes da Silva acredita que a proximidade dos 220 anos de nascimento se torna boa oportunidade de conhecer mais a história.
Em 1845, Lund, com 44 anos, resolveu parar com as escavações, alegando motivos diversos e por não encontrar mais tantas novidades nas cavernas Enquanto trabalhou, embalou os fósseis e listou cuidadosamente um a um, escreveu sobre eles, até que os despachou para Copenhague. Longe do trabalho nas cavernas, passou a exercer outras atividades, como a medicina, cuidando da população.