No ano em que Ouro Preto comemora quatro décadas do título de patrimônio da humanidade e o tricentenário da Sedição de Vila Rica, marco da história de Minas, a turística cidade da Região Central do estado se torna alvo de descaracterização, conforme denúncia apresentada ao Ministério Público estadual. Indignada com o asfaltamento de ruas no Bairro Jardim Alvorada, Kátia Maria Nunes Campos, pesquisadora e doutora em demografia histórica, além de moradora, entrou com interpelação na Promotoria de Justiça da comarca para pedir esclarecimentos. O promotor de Justiça Domingos Ventura de Miranda Júnior afirmou que já estão sendo “tomadas as medidas cabíveis” de contestação. Procurada pelo Estado de Minas, a Prefeitura de Ouro Preto não se manifestou. O local abrigou uma das mais antigas ocupações da ainda Vila Rica.
A via pública tinha calçamento em pedra pé de moleque. Segundo Kátia, é inaceitável que uma rua "a 800 metros da Capela do Bom Jesus e da Basílica de Nossa Senhora do Pilar (século 18)" seja asfaltada. Ela questiona se houve autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pelo tombamento do Centro Histórico, em 1938. De acordo com outros moradores, o asfaltamento inclui ainda o Bairro Santa Cruz. Os dois bairros não ficam dentro do Centro Histórico de Ouro Preto, mas na área de amortecimento do tombamento federal. Em 1980, Ouro Preto e se tornou a primeira cidade brasileira a receber o título de patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Em nota, a Superintendência do Iphan em Minas confirma a autorização e diz que verifica a regularidade da obra. "Por se tratar de área de ocupação recente e de menor restrição dentro do perímetro tombado, já houve autorização para as intervenções em questão. Porém, o órgão está verificando a vigência do processo de licenciamento, bem como de eventuais impedimentos de ordem judicial". E mais: "Cabe ressaltar que autorizações do Iphan não substituem a manifestação de outros órgãos competentes ou anulam decisões de ordem judicial".
De acordo com a pesquisadora e demógrafa histórica, a rua (Anália Esteves Ribas, no Jardim Alvorada), está localizada onde havia uma antiga olaria, que remonta a 1740. "São necessários estudos arqueológicos. Em Ouro Preto, tudo fica visível", afirma. Ela lembra que há uma ação na Justiça Federal impedindo que ruas de Ouro Preto sejam asfaltadas. "Mas a questão se encontra sub judice", acrescenta.
Segundo pesquisa de Kátia Nunes, a rua asfaltada no Jardim Alvorada integra uma das mais antigas ocupações de Vila Rica. "Na direção noroeste, na outra ponta da sesmaria, temos o Córrego da Olaria, que se une ao Córrego do Passadez. O nome caiu em desuso, ao longo dos séculos, mas a antiga entrada para a sesmaria se tornou a Rua da Olaria, nome que permanece", explica.
OLARIA Estudos mostram que o sargento-mor Félix de Gusmão Mendonça e Bueno, um dos primeiros vereadores de Vila Rica (1711), tinha posse dessa área. "Foi criada para implantar hortas de subsistência de mineradores, depois da grande fome de 1709 (ele teve outra, no Morro São Sebastião, que se chamou Ouro Bueno ou Ouro Podre)". Bueno participou da Guerra dos Emboabas, ao lado da família Borba Gato".
Segundo os relatos, a argila do local era de excelente qualidade, e Bueno instalou também uma olaria, que forneceu telhas para as primeiras edificações, além de utensílios. "É temerário afirmar apenas que se trata de um bairro 'novo', sem vestígios arqueológicos, para justificar mais um asfaltamento pressionado por interesses locais. Não é por outra razão que a tutela do nosso patrimônio cultural está na jurisdição federal, para fugir de decisões baseadas em pressões locais, por administrações transitórias. Onde é o limite?", questiona.
Memória - Embargo em 2013
Em 2013, o asfaltamento de áreas históricas de Ouro Preto chegou à Justiça. Tratava-se da pavimentação da Rua Engenheiro Correa, caminho de acesso ao Museu Casa dos Inconfidentes, na Vila Aparecida, que teve pedras cobertas pelas máquinas, sem que fosse ouvido o Conselho Municipal do Patrimônio. A situação foi denunciada pelo Estado de Minas em 19 de setembro de 2012. Além do entorno do museu, estavam no projeto a pavimentação de todo o núcleo histórico do distrito de Rodrigo Silva, sem autorização do conselho, e o asfaltamento do Morro São Sebastião, iniciado sem autorização do Iphan. As obras foram interrompidas pela Justiça Federal por meio de liminar e não houve decisão final.