A Polícia Civil de Minas Gerais indiciou 11 pessoas por lesão corporal, homicídio e intoxicação no caso de contaminação de cervejas da marca mineira Backer. A corporação constatou que um vazamento em um tanque provocou a contaminação das cervejas por mono e dietilenoglicol, substâncias tóxicas usadas no resfriamento do produto, contrariando as instruções do próprio fabricante do equipamento. A ingestão do líquido de apenas uma garrafa da Belorizontina, a marca que deu início à investigação, contendo dietilenoglicol, seria suficiente para matar uma pessoa. Mas como a cerveja foi contaminada? É autorizado o uso de substâncias tóxicas para a refrigeração da bebida? Por que a maior parte dos casos foi no Buritis? Detalhes da investigação, conduzida pela 4ª Delegacia de Polícia Civil do Barreiro, tendo à frente o delegado Flávio Rossi e o superintendente de polícia técnico-científica, médico-legista Thales Bittencourt, foram passados em coletiva de imprensa ontem. O inquérito foi encaminhado ao Tribunal de Justiça, mas ainda não havia sido recebido ontem pelo Ministério Público, a quem caberá decidir se denúncia será ou não oferecida à Justiça. O prazo é de 15 dias.
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O que aconteceu
Sabotagem, erro de procedimento na fábrica ou contaminação dolosa eram as três linhas sobre as quais a polícia se debruçava para desvendar o motivo da presença de substâncias tóxicas em lotes das cervejas da empresa mineira. “No início das investigações, como não podemos fechar hipóteses, havia até a possibilidade de contaminação dolosa, para o aumento da produção, por exemplo, como também a de sabotagem. Conseguimos concluir que, na verdade, ocorreram crimes culposos (quando o autor não tem intenção nem assume o risco de matar) no que tange à contaminação”, detalhou o delegado Flávio Grossi.
O fato é que um vazamento liberou dietilenoglicol nas cervejas produzidas pela Backer. Segundo o delegado Flávio Grossi, a corporação conseguiu comprovar – física e quimicamente – a existência de um vazamento no tanque de cerveja. Flávio Grossi explicou que a apuração foi multiprofissional, envolvendo químicos, engenheiros e peritos. Primeiro, foi preciso entender como a cerveja é feita. “O malte é levado para um processo que produz o mosto (cerveja antes da fermentação). O mosto é resfriado e levado por tubulações ao tanque de fermentação. O tanque é resfriado com líquido anticongelante e o produto, posteriormente, embalado para consumo. Deve-se resfriar os tanques de forma que não haja vazamento: é uma grande geladeira chamada de chiller”, detalhou.
O vazamento que contaminou as cervejas foi identificado justamente no chiller. Segundo Flávio Grossi, houve falha na solda do tanque, adquirido pela empresa no fim do ano passado. “O líquido (tóxico) jorrava e se misturava com a cerveja”, informou. As investigações determinaram que o vazamento começou em setembro de 2019, quando foi adquirido o tanque JB10. Entretanto, o delegado disse também que foram encontrados outros pontos de vazamento na mesma adega.
O uso de substâncias tóxicas
Ainda segundo o delegado, não é possível responsabilizar os proprietários da cervejaria pela falha na solda do tanque, mas o ponto é o uso do dietileno ou monoetilenoglicol na produção. Flávio Grossi afirma que foram identificadas duas modalidades da culpa: negligência e imperícia. “Esse vazamento ocorreu porque havia um furo no tanque no alinhamento da solda. A questão a se destacar não é a ocorrência do vazamento, mas o uso de uma substância tóxica (em linha de produção) destinada à alimentação. Ela não poderia ocorrer”, enfatiza.
E mais: o próprio manual do fabricante deixa isso claro e, segundo o delegado, bastaria uma simples leitura dele para saber que aqueles equipamentos devem funcionar apenas com anticongelantes não tóxicos, como o álcool. "O tanque exigia consumo de substância não tóxica e a usada era tóxica. O chiller indicava também uso de substância não tóxica. Essas substâncias (não tóxicas) poderiam circular e, mesmo vazando, não haveria efeito danoso às vítimas. (...) Se os manuais dos fabricantes fossem seguidos, não estaríamos aqui. No máximo, ocorreria diferença de sabor ou aumento de teor alcoólico", disse Grossi.
Entrada do tóxico
A investigação também responde a outra pergunta que vem sendo feita desde que a contaminação veio à tona. Como o dietilenoglicol, que a empresa afirma não usar, embora sempre tenha admitido a utilização do também tóxico monoetilenoglicol, foi parar na produção? Exames necropsiais constataram a presença da substância no corpo de pessoas que perderam a vida depois de consumir a Belorizontina e tiveram síndrome nefroneural. "Em todas, também foi constatada a presença do tóxico dietilenoglicol. Cem por cento de produtividade nas necropsias", afirmou o superintendente de polícia técnico-científica, Thales Bittencourt.
Durante as apurações, detalhou a polícia, foi encontrado um tambor na área de descarte, no qual se lia “mono”, de 2018. No entanto, dentro dele havia dietilenoglicol. Foram analisados 10 tambores na fábrica da Backer, sendo que havia nove com mono e um com dietilenoglicol. "De fato, a cervejaria sempre comprou monoetilenoglicol. Isso é constatado em várias etapas da cadeia de compra. Ela não comprou voluntariamente o dietilenoglicol”, disse Flávio, antes de explicar a procedência da outra substância.
Segundo ele, o dietilenoglicol foi rastreado em análise de notas fiscais emitidas por uma empresa do interior de São Paulo, que comprava as duas substâncias de grandes fornecedores em volumes maiores e as revendia para uma fornecedora menor, que fica em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Em um momento específico, investigadores encontraram uma inconsistência: “Em agosto, a empresa comprou 5.600 quilos de monoetilenoglicol e 5.600kg de dietilenoglicol. A gente acredita que no dia 27 ela realiza uma mistura e, no dia 29, fornece para a química de Contagem, que posteriormente fornece para a cervejaria. No dia 9, o tanque em investigação entra em operação", disse o delegado. A substituição do líquido, por parte da fornecedora, será alvo de uma segunda investigação, mas, segundo o delegado Flávio Grossi, ela não interfere na conclusão do atual inquérito, já que nem mono nem dietilenoglicol deveriam estar presentes no tanque.
Por que no Buritis
Durante a apresentação do resultado do inquérito, a Polícia Civil explicou ainda o motivo de um terço das vítimas de intoxicação ligada à ingestão de dietilenoglicol, 10 no total, terem sido identificadas no Bairro Buritis, Região Oeste de Belo Horizonte. Ele explicou que, em geral, as grandes redes de supermercados compram as cervejas e as remetem aos centros de distribuição, mas um estabelecimento no Buritis recebeu uma entrega direta. “Na black friday, a rede fez uma compra na cervejaria e ela entregou para um supermercado da rede no Buritis”, explicou.
Os indiciados
A Polícia Civil não divulgou os nomes dos indiciados. Isso porque, segundo a assessoria de imprensa da corporação, configura abuso de autoridade. De acordo com a Lei 13.869, de 5 de setembro de 2019, autoridades não devem constranger o detento “e exibir seu corpo a curiosidade pública" ou divulgar imagem ou nome de alguém apontando-o como culpado. Entretanto, a polícia informou tratar-se de uma testemunha que mentiu; o chefe da manutenção, por omissão; seis responsáveis técnicos, por homicídio culposo, lesão corporal culposa e por agirem com culpa na contaminação; e, por fim, três gestores da Backer indiciados por atos na pós-produção. Três sócios foram autuados no artigo 64 do Código de Defesa do Consumidor, por não realizar recall em produto que poderia apresentar risco ao consumo, e também pelo artigo 172, que trata de contaminação de produto alimentício, por manter as cervejas em estoque.
O outro lado
Por meio de nota, a assessoria da cervejaria mineira disse que “reafirma que vai honrar com todas as suas responsabilidades junto à Justiça, às vítimas e aos consumidores”. Sobre o inquérito policial, a Backer informou que “tão logo os advogados analisem o relatório, a empresa se posicionará publicamente”. (Colaborou Cristiane Silva)
Cronologia da investigação
Confira o passo a passo da apuração policial do Caso Backer
» 5 de janeiro
Investigações do caso Backer têm início na 4ª Delegacia de Polícia Civil do Barreiro, após a circulação de mensagens em redes sociais sobre a internação, em hospitais da capital, de pessoas que teriam consumido a Belorizontina.
» 6 de janeiro
Amostras da cerveja Belorizontina são encaminhadas ao Instituto de Criminalística.
» 7 de janeiro
Morre Paschoal Demartini Filho, de 55 anos, que havia sido internado com síndrome nefroneural após consumir a Belorizontina. Foi o primeiro de sete óbitos registrados no decorrer do inquérito.
» 8 de janeiro
Resultados das análises das amostras indicam a presença de dietilenoglicol na bebida.
» 9 de janeiro
É instituída uma força-tarefa composta pela Polícia Civil de Minas Gerais, pelo Ministério Público de Minas Gerais, pela e Secretaria Estado de Saúde e pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para investigar o caso, que vai várias vezes à empresa nos dias seguintes.
» 10 de janeiro
Mapa determina a interdição da cervejaria Backer, fabricante da Belorizontina.
» 11 de janeiro
Cervejas recolhidas na Backer e cedidas por parentes das vítimas são levadas de avião para o Distrito Federal, onde passam por teste de carbonatação, que verificou não terem sido violadas antes de submetidas a exames que detectaram a presença de mono e dietilenoglicol no líquido. O teste deu a certeza de que a contaminação ocorreu dentro da fábrica.
– Amostras de sangue das vítimas internadas detectam a presença de dietilenoglicol e um metabólito da substância, o ácido diglicólico.
» 13 de janeiro
Relatório de necropsia constata a intoxicação de Paschoal Demartini por dietilenoglicol. No decorrer das investigações, médicos legistas identificaram em necropsias de vítimas alterações neurológicas e renais em exames compatíveis com a intoxicação pelo dietilenoglicol.
» 16 de janeiro
A PCMG vai até fornecedora do líquido refrigerador à Backer, em Contagem, na Grande BH, onde recolhe amostras de produtos químicos e documentos da empresa.
» 17 a 29 de janeiro
Polícia ouve 26 pessoas, entre parentes dos intoxicados (foto) e representantes da empresa, o que permitiu compreender como as vítimas foram contaminadas e a atuação de cada investigado na produção cervejeira.
» 27 de fevereiro
Tanques de fermentação da cervejaria começam a ser analisados pela força-tarefa.
» 6 de março
Produto fluorescente é colocado no compartimento do líquido refrigerante e percorre as tubulações da fábrica, permitindo a identificação de dois grandes pontos de vazamento de dietilenoglicol e monoetilenoglicol. No período subsequente, os policiais analisam a produção da cervejaria e os dados colhidos.
» 9 de junho
A polícia informa que encontrou um grande vazamento na bomba do chiller. Também foram encontrados vários vazamentos nos canos que levam o monoetileno para os tanques de maturação e fermentação denominados como JB. Foram encontrados vazamentos dentro dos tanques, onde jorrava substância tóxica na cerveja. Após as misturas, a cerveja contaminada era engarrafada e levada para o consumo
– Onze pessoas foram indiciadas
– O inquérito é encaminhado ao Ministério Público, que tem 15 dias para apresentar ou não a denúncia à Justiça