Jornal Estado de Minas

COVID-19

Efeitos da pandemia na emergência: quem se fere mais e menos em tempos de isolamento?



Um retrato de efeitos do distanciamento social, tirando de dentro das alas da principal porta de entrada para casos de urgência e emergência de Belo Horizonte: o isolamento a que foram submetidas milhares de pessoas – não apenas na capital, mas em todo o estado – fez despencar praticamente pela metade o número geral de atendimentos no Hospital de Pronto Socorro João XXIII, o maior de Minas Gerais. A redução foi de 8.304 para 4.160, na comparação dos meses de abril de 2019 e 2020, considerado o pico do distanciamento social em BH. Os dados que mais puxaram para baixo as estatísticas foram os relativos a vítimas de desastres de trânsito, no comparativo com mesmo período. Em abril do ano passado, foram 776 vítimas. Neste ano, 399. Por outro lado, acidentes com álcool dispararam e a violência doméstica preocupa.





Em relação aos crimes violentos, os números tiveram menores variações. Porém, médicos perceberam aumento no número de casos de mulheres agredidas que buscam por socorro. Queimaduras também chamam a atenção, e uma das explicações é a má utilização do álcool – substância ainda mais presente na vida dos brasileiros em tempos de pandemia, especialmente em sua versão mais perigosa, a líquida. Apesar da queda nos atendimentos em geral, a área especializada em suporte a queimados está lotada e pacientes internados em outros setores aguardam o surgimento de vagas. 

“Antes da pandemia do novo coronavírus, as principais ocorrências eram  de vítimas de acidentes automotivos, com destaque para os desastres envolvendo motocicletas. Além desses, um alto número de pacientes vítimas de agressão por arma de fogo, assim como pessoas com queimaduras”, afirma o cirurgião-geral Leonardo Belga Ottoni Porto, que atua na unidade. Em 2019, deram entrada no HPS 8.694 feridos em acidente de trânsito, 2.895 por agressão e 1.304 com queimaduras. 

O cenário começou a mudar a partir de 20 de março deste ano, quando grande parte dos belo-horizontinos passou a se recolher em casa, diante da pandemia que já avançava tirando milhares de vidas na Europa. Belo Horizonte foi a primeira capital a fechar o comércio no país, conforme orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Com a pandemia e o isolamento social, percebemos um aumento na chegada de vítimas de queda da própria altura – principalmente idosos – aumento em tentativas de autoextermínio e um aumento do número de vítimas de queimaduras, em crianças e em adultos”, disse. Ele também afirma que houve acréscimo no número de mulheres agredidas, paralelamente à diminuição no número de acidentes envolvendo carros, ônibus, motos e pedestres.



Em abril, no coração de Belo Horizonte, a Praça Sete, que tinha movimentação de mais de 400 mil pessoas por dia, teve o tráfego reduzido em até 71%. Expandida para a cidade, essa realidade se traduziu na queda no número de acidentes nas ruas. Em abril do ano passado, o HPS atendeu a 33 ciclistas, 124 ocupantes de automóveis de passeio, 448 ocupantes de motocicletas, 40 ocupantes de ônibus e 131 pedestres. Este ano, no mesmo período, foram 18 ciclistas, 47 ocupantes de automóveis de passeio, 264 ocupantes de motocicletas, seis ocupantes de ônibus e 64 pedestres.

“Mas, vale ressaltar que o número de atendimentos a motociclistas continua sendo o mais alto, e foi o que menos caiu. Possivelmente porque, com as ruas vazias, eles abusam da velocidade”, avalia o médico. O que também pode ajudar a explicar a situação é o fato de que o isolamento social fez com que aplicativos de transporte aumentassem a carteira de clientes na capital, atendendo a pedidos de refeições desde o café até o jantar. Estima-se que o delivery de alimentos tenha crescido até 20% na cidade com a crise do coronavírus.

 CAUTELA Apesar da percepção de aumento em índices como o que se refere à queda de idosos, no geral os acidentes domésticos também tiveram redução durante o período de isolamento. Talvez consequência de precaução da população em relação aos riscos divulgados de se usar o serviço de saúde, devido à possibilidade de contágio pelo novo coronavírus.



“Percebemos uma grande redução no volume de atendimento no hospital. Isso coincidiu com o período maior isolamento social que ocorreu, principalmente, ao longo de abril. Em maio percebemos um pequeno aumento novamente no volume de atendimento dos plantões. Talvez, pelo tempo de distanciamento social, as pessoas foram se cansando e começaram a abandonar o isolamento”, avalia o cirurgião Leonardo Porto.

O "HPS"


Referência na Região Hospitalar de Belo Horizonte, no Bairro Santa Efigência, Região-Centro Sul da capital, o Hospital João XXIII foi criado em 1973, para atender a uma demanda que a rede de saúde então existente já não suportava. Tornou-se sinônimo de “pronto-socorro” na cidade, tanto que é popularmente conhecido simplesmente pela sigla “HPS”. Ao longo dos anos, se consolidou como centro de excelência no atendimento a vítimas de politraumatismo, queimaduras, intoxicações e situações clínicas e cirúrgicas com risco de morte.

(foto: Arte EM)


Álcool vira vilão das queimaduras 


Já o número de atendimento a vítimas de queimadura com álcool disparou no Hospital João XXIII. Isso embora o total de queimados tenha diminuído, por exemplo, no mês de abril na comparação com o mesmo mês do ano passado – o que indica que o líquido inflamável tem tido maior participação no conjunto de vítimas. A cirurgiã plástica Kelly Danielle de Araújo, coordenadora do Centro de Queimados da unidade, que é referência no setor, afirma que os principais motivos de queimaduras atendidas antes do isolamento social eram as causadas por líquido quente.



Com a quarentena e as crianças em casa, elas permanecem, assim como os acidentes com panelas no fogão, ferro de passar, fios e tomadas de eletricidade e manipulação de produtos químicos. Mas a médica chama a atenção para o aumento das queimaduras por álcool, tanto em crianças quanto em adultos. Isso porque o líquido inflamável passou a ser mais presente na casas com o novo coronavírus.

“Considerando que o álcool se localiza em vários ambientes da casa, sendo na forma de gel ou até mesmo na forma líquida – que representa maior risco ainda –  as pessoas o manipulam várias vezes ao dia, e seguem a rotina com hábitos como acender o fogão ou fumar. Preocupa-nos demasiadamente essa situação”, alerta a cirurgiã Kelly de Araújo.

Ela explica que esse é um dos motivos para o HPS estar com a unidade de queimados lotada. “Temos queimados em outros setores do hospital aguardando o surgimento de vaga na unidade especializada, e há uma fila de pacientes externos aguardando transferência”, disse.



Apesar da percepção de quem está na linha de frente, o hospital não mantém um levantamento específico para acidentes com álcool. Mas, na comparação do período um pouco antes de 19 de março, quando foi autorizada a venda de álcool líquido 70% em farmácias, devido à pandemia, e o período um pouco depois, a especialista notou um aumento de um quarto nas queimaduras pelo combustível. Isso considerando apenas os queimados em média e grande escalas internados no serviço. “Nem contabilizamos aí os pacientes com pequenas lesões, que não necessitam de internação hospitalar, apenas acompanhamento ambulatórial”, acrescenta.

Dano maior


A médica destaca a necessidade de cuidado extra, já que a queimadura por álcool tende a ser mais grave do que a causada por água fervente. “Acomete camadas mais profundas da pele e tem a característica de manter tal aprofundamento ainda por mais dias após a data do acidente”, afirma.

Por esse motivo, a especialista ressalta não haver necessidade do uso do álcool – gel ou líquido – em ambiente domiciliar. “A  própria Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) já emitiu nota em que informa que dentro de casa pode ser feita a limpeza das mãos com água e sabão, e a limpeza da casa e móveis com solução de água sanitária e água”, afirma.



A cirurgiã faz ainda um outro alerta: o álcool líquido é muito inflamável e pode causar explosão, podendo ferir outras pessoas que estiverem no ambiente e provocar incêndio. E o produto em gel, como demora a secar, permanece podendo se incendiar por mais tempo. 

Violência doméstica provoca preocupação


O perfil da violência também mudou durante a pandemia. “Destacamos o número de agressões por arma branca. Isso chama muito a atenção. É o tipo de violência que vemos muito em período de reuniões familiares, como o Natal”, afirma o cirurgião Leonardo Porto. No período de distanciamento social, a percepção é de que se trata de um tipo de violência que se intensificou não apenas entre familiares como também entre vizinhos. Ao lado dos ataques com objetos cortantes, os provocados por arma branca foram os que menos caíram durante o período de distanciamento.

Ocorrências de traumas na cabeça ou face de mulheres vitimadas por parceiros também aumentaram, na percepção de médicos. Em relação à violência contra a mulher, Leonardo Porto avalia que os atendimentos cresceram nos últimos dois meses. “É o tipo de atendimento que aumentou notavelmente”, afirma o especialista. Entretanto, o HPS não tem estatísticas específicas por gênero. 

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