Chega mesmo um tempo em que não se diz mais: “Meu Deus”, como constata o mineiro Carlos Drummond de Andrade em um de seus poemas mais conhecidos, Os ombros suportam o mundo. Ao menos essa é a impressão de quem tenta conversar sobre o avanço do novo coronavírus com moradores dos bairros Belvedere e do Buritis, onde o Estado de Minas circulou na tarde de ontem. Segundo a prefeitura, os dois bairros – situados nas regiões Centro-Sul e Oeste – lideram o ranking de casos de COVID-19 na capital. A notícia não chega a alterar a expressão ou tom de voz da maioria das pessoas abordadas pela reportagem. “Ah é? Nem sabia.” “Ouvi falar.” “Diz que é mesmo”, comentavam os entrevistados ao serem confrontados com a situação. Como quem recebe a notícia de que vai chover.
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Moradora dos arredores do BH Shopping, onde o movimento era moderado e sem aglomerações – Eliana Machado, de 69 anos, fazia sua caminhada diária pela Lagoa Seca “sem neuras”, expressão que ela usa para definir sua maneira de encarar o surto global. O fato de o Belvedere concentrar o segundo maior volume de infectados pelo coronavírus não parece abalar a decoradora. “Não estava sabendo disso. Mas eu estou protegida. Não tenho contato com as pessoas que tem COVID-19. Para mim, está tranquilo”, comentou.
A decoradora aproveitou para criticar a imprensa pelas denúncias de aglomerações nas principais pistas de práticas de esporte e lazer da capital. “ Tem coisa sensacionalista e a gente tem que tomar muito cuidado com isso. Hoje, as notícias, a gente tem de pôr na balança”, queixou-se. Ontem, o movimento na Lagoa Seca, que foi cercada por grades, era reduzido. Quem saiu para passear ou se exercitar no local usava máscaras e respeitava a distância orientada pelas autoridades sanitárias. Embora a prática de esportes ao ar livre durante a pandemia não esteja exatamente aconselhada.
Na Avenida Luiz Paulo Franco, forte ponto comercial do Belvedere, o revendedor Eduardo Ribeiro, de 24 anos, passeava com o cachorro pela calçada com a máscara posicionada abaixo do queixo. Acertou a posição do item de proteção ao ver as câmeras da reportagem. Não esboçou reação ao ser informado sobre a propagação da COVID-19 na região e avaliou que a comunidade local está cumprindo o isolamento social de forma razoável. “Como na cidade inteira, (o movimento) já está começando a voltar. Mas nada igual antes. Acredito que a população está cumprindo o recomendado”, pontuou, apontando para as lojas das redondezas – sem grandes filas ou tumultos.
O office boy Guilherme Mendes, de 19, não mora no Belvedere. Trabalha há três meses em uma loja de móveis da Luiz Paulo Franco. Resignado, ele diz não temer o cenário da pandemia no bairro, mas acredita que a reabertura do comércio pode ajudar a agravar a situação. “Tem muita gente que vem para cá para trabalhar. O ônibus está sempre lotadíssimo. As vezes isso ajuda”, pondera.
'Rapidinho'
No Buritis, próximo da Avenida Mário Werneck – onde o movimento era pouco maior que o observado no Belvedere –, as pessoas não se mostravam dispostas a entrevistas. Temiam ser “fiscalizadas”. Valquíria Damasceno, de 51, aceitou falar após alguma insistência, mas foi breve nas respostas. “Ouvi falar (da propagação do vírus no Buritis). Por isso, venho aqui rapidinho, faço o que tenho que fazer e vou embora”, justificou. Questionada sobre as aglomerações em bares e quadras esportivas outrora flagradas na região, a professora afirma que o respeito ao isolamento social melhorou, sobretudo após as denúncias e reforço da fiscalização. “Aqui no bairro, depois das 19h, não tem ninguém na rua mais”, disse. A estudante Vanessa Gomes, no entanto, acredita que as pessoas continuam fazendo festas, só que em casa. “Vejo muita gente combinando no Whatsapp. Ninguém está preocupado”, relata a jovem de 16.
A única demonstração de sobressalto veio da pedagoga Vera Torres, de 69. “Tudo isso me assusta muito”, confessou a idosa, que é sergipana, mas mora há 14 anos no Buritis. Talvez porque acompanhe o drama da COVID-19 de perto. Vera conta que vários membros de sua família, que mora em Aracaju, foram contaminados. “Minha nora está saindo de uma pneumonia. Pegou o vírus do meu filho, que se infectou indo para o trabalho. Um dos meus netos também já testou positivo. Esse vírus é complicado, nem os infectologistas estão entendendo . Minha nora se curou, mas continua tossindo. Perguntou ao médico se a tosse poderia ser emocional. Porque ela está estressadíssima, né? Ele não soube dizer, explicou que ainda não se sabe das sequelas que o vírus deixa”, relatou. Com a inquietude de quem está bem-informada.