Enquanto os olhos da saúde se voltam para os riscos da pandemia do novo coronavírus, uma outra ameaça paira no ar em Belo Horizonte e região metropolitana: o uso de cerol e da linha chilena. Números levantados pelo Estado de Minas mostram que os atendimentos a vítimas no mês de maio já superam o total dos cinco primeiros meses do ano passado. A alta súbita dos índices pode estar ligada a reflexos da quarentena. Sem aulas presenciais crianças e adolescentes têm quebrado o isolamento social recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para soltar papagaios, muitas delas fazendo da brincadeira uma arma, que causou pelo menos duas mortes em Minas em menos de cinco dias no início de junho, uma em Montes Claros e outra em Bocaiúva, ambas no Norte de Minas.
De acordo com a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), no ano passado, o Hospital João XXIII fez quatro atendimentos a vítimas de acidentes com linha chilena entre janeiro e maio. Somente em maio deste ano, foram seis atendimentos, superando todos os cinco primeiros meses de 2019. Houve, também, um paciente em janeiro e dois em abril. Em junho, o índice caiu: foram sete atendimentos neste ano, contra 13 no mesmo mês no ano passado, ainda assim um volume alto, em época que deveria ser de isolamento social e em que o trânsito está reduzido. E isso considerando apenas os casos mais graves, que chegaram à principal unidade de atendimento a urgências e emergências da capital.
Apesar da redução, o alerta persiste no ar – basta olhar para o céu para percebê-lo – e as marcas causadas por cerol ficam para o resto da vida. Foi o que aconteceu com Luan Moreira. O entregador, de 27 anos, estava trafegando na tarde de 6 de maio pelo Bairro Jardim Laguna, em Contagem, na Grande BH, onde mora, quando foi surpreendido por uma linha cortante. Luan, que transportava encomendas para a mãe, dona de um ateliê de doces, conta que a antena de proteção da moto, o socorro dos vizinhos e a ação rápida do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) fizeram a diferença.
“De repente, eu senti um frio na espinha. Foi rápido, mas deu tempo de ver a antena quebrando para o meu lado. Parece que a linha correu nela primeiro antes de pegar em mim. A linha vem como se fosse um chicote. Não tirei ela do meu pescoço, ela meio que passou. Parece que estava no final, por isso cortou pouco do lado esquerdo e no direito cortou mais”, conta o motociclista. “Na hora eu parei a moto, tentei baixar o descanso, vi que estava sangrando muito. Desci da moto e coloquei a mão no pescoço. Deitei no chão e chamei um rapaz que estava passando na rua. Na mesma hora os vizinhos vieram e ligaram para o Samu. Deus na frente sempre, mas acho que o atendimento do Samu ajudou muito”, completou.
Rodar, agora só à noite
Luan foi levado ao Hospital Municipal de Contagem. Lá, recebeu 35 pontos. Com a retirada recente dos pontos, o rapaz aos poucos tenta retomar a rotina sobre duas rodas. Mas, por enquanto, só trafega no período da noite, quando não há pipas no céu. “Pego a Via Expressa direto. Às vezes, ficava com medo de a linha cair e dar aquela ‘barriga’, pelo fato de a via ser larga. No bairro eu nunca pensei que pudesse acontecer, por causa dos postes que estão pertinho das casas”, contou.
Uma linha também cruzou o caminho de Gabriel Nascimento. O caso do adolescente, de 16 anos, ocorrido em julho do ano passado, causou grande repercussão. Na ocasião, Gabriel caminhava pela calçada em Betim, na Grande BH, depois de sair de uma partida de futebol, quando foi atingido pela linha, que estava presa a um ônibus. O jovem teve uma das pernas amputada, mas mesmo assim não desistiu do sonho de ser jogador.
O adolescente contou com a ajuda de um enfermeiro que passava pela Avenida José Inácio Filho, onde ocorreu o acidente, e com a equipe do Samu para os primeiros socorros. Depois, passou uma semana internado no Hospital Municipal de Betim. “Quando me cortou, não tive reação nenhuma. Quando deitei no chão, não passou nada. Comecei a pedir a Deus para me livrar, para me ajudar, para não perder a perna. Acabou acontecendo”, conta. “Agora está tudo bem, graças a Deus. Com a pandemia eu dei uma parada nos treinos, mas está tudo bem”, afirma.
Combate desafia guardas municipais
Em Belo Horizonte, a prefeitura desenvolve a campanha Cerol Mata!, por meio da Guarda Municipal, para prevenir e combater o uso de cerol e linha chilena. As ações são de educação e repressão ao uso de linhas cortantes, mas, com o isolamento social e escolas fechadas, os agentes foram deslocados para fiscalizar pontos de comércio abertos de forma irregular na capital.
Sem aulas presenciais, crianças e adolescentes começaram este ano mais cedo a soltar pipas e papagaios, brincadeira que normalmente se intensifica nas férias escolares. O agente Éder Gotelipe, que integra a equipe da campanha, observou que o movimento das pipas começou já no início de maio, diferentemente dos outros anos. “Essa brincadeira começa com a incidência de ventos fortes, normalmente no meio de junho e julho, que coincide com as férias escolares. Com escolas fechadas e mais pessoas em casa, uma das alternativas foi soltar papagaio”, disse. O resultado vem aparecendo nos serviços de saúde.
O agente lembra que não é errado brincar, mas ressalta que é crime usar linhas cortantes. “Infelizmente muitas pessoas têm utilizado materiais cortantes, o que, além de ser crime, coloca em risco a vida de muitas pessoas”, enfatiza Gotelipe. “O papagaio é uma brincadeira milenar, a gente até incentiva, porque passa de pai pra filho, mas tem que usar linha branca, para não causar acidentes.”
O agente ressalta a gravidade dos ferimentos que podem ocorrer. “Essas linhas têm um poder de corte muito grande, podendo levar ao óbito ou à amputação de membros”, alerta Gotelipe. Segundo ele, paralelamente às ações de fiscalização, a Guarda Municipal orienta motociclistas durante as blitzes quanto ao uso de antena e, quando a corporação flagra linhas irregulares, o material é apreendido.
No último dia 23 de maio, uma abordagem realizada no Bairro Tirol, no Barreiro, resultou no encaminhamento de um homem à Central de Flagrantes da Polícia Civil, por resistência à abordagem e desacato. Um estabelecimento comercial foi fechado por estar comercializando linha chilena e 38 latas com material cortante foram apreendidas. “Além das ações da COVID-19, que é nosso foco hoje, temos tentado trabalhar a conscientização”, disse o guarda.
Em 2018 foram registradas 15 ocorrências relacionadas a linhas cortantes, sendo apreendidas 162 latas com linhas de cerol ou linha chilena. Em 2019 quatro ocorrências foram registradas pela corporação. Não ocorreram prisões, pois, segundo a Guarda Municipal, é comum que os infratores abandonem o material e fujam ao avistar os agentes.
Grande BH
Em Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a Guarda Civil lançou uma operação de combate ao comércio e ao uso de cerol e linha chilena no dia 26 de maio. Desde então, os agentes fizeram a apreensão de 832 carretéis de linha chilena ou com cerol, além de promover 2.281 ações preventivas. Segundo a prefeitura, as pessoas encontradas com o material são orientadas. Por lá, as operações de prevenção não têm data para terminar. “Estabelecimentos comerciais e pessoas soltando pipa ou papagaio serão fiscalizados. A população pode ajudar ligando 153, para que a Guarda Civil vá até o local verificar os materiais que estão sendo usados”, informa a prefeitura.
Em Betim, até maio, a Guarda Municipal havia feito a apreensão de 40 carretéis de linhas cortantes. A maior incidência de casos, de acordo com a corporação, é durante os fins de semana. No mês de junho foram realizadas 538 abordagens por todas as regionais da cidade, o que resultou na apreensão de 346 carretéis de linhas cortantes.
Fique antenado
Usar cerol é crime e mata
Quem for flagrado vendendo linhas cortantes pode ser multado. O uso dessas linhas é crime com pena de três meses a um ano de prisão. Se o infrator for menor de idade, os pais podem ser responsabilizados
Denuncie
Se você flagrar alguém usando ou souber quem comercializa linhas cortantes (com cerol ou linha chilena), denuncie: ligue 153 (Guarda Municipal) ou 190 (Polícia Militar)
Para brincar com segurança
» Nunca use linhas cortantes
» Tenha atenção redobrada com motociclistas e ciclistas — a linha, mesmo sem cerol, é muito perigosa para eles
» Nunca solte pipas em dias chuvosos
» Evite brincar perto da rede elétrica. Priorize locais abertos, como praças e parques
» Não empine pipa em cima de lajes e telhados
» Evite usar pipas com rabiola. Na maioria das vezes é ela que se prende aos fios
» Nunca tente tirar a pipa se ela se enroscar na rede elétrica
» Evite ruas e lugares movimentados, para reduzir o risco de acidentes
Perigo em alta
Atendimentos a vítimas de acidentes com linha cortante no Hospital João XXIII nos cinco primeiros meses do ano
2019
Janeiro 2
Maio 2
2020
Janeiro 1
Abril 2
Maio 6
Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte