"Eu me encontrei divorciada, desempregada, com um filho pequeno. Aí, pensei: 'Gente o que eu vou fazer da minha vida?'"
Hulla de Kássia, separada há dois anos e integrante do projeto
O casamento durou 15 anos. Os últimos, marcados por traições, abusos psicológicos e, por fim, agressão física. Ana Flávia Couto, de 40 anos, conta que os seguidos arremessos contra a parede que sofreu do ex-marido, em julho de 2019, ocorreram na frente do filho, na época, com 8. Ela não suportou mais. Enquanto a polícia a escoltava, pegou duas malas, colocou roupas para ela e a criança, jogou no porta-malas do carro e dirigiu por 18 horas. Deixou Cascavel (PR) e viajou para a casa dos pais, em Belo Horizonte. Desde aquela tarde de terça-feira, foram 11 meses de silêncio, dor e solidão. Na quarentena, no entanto, descobriu que não estava mais sozinha.
O silêncio foi rompido numa sala virtual de terapia em grupo. “Foi a primeira vez que eu verbalizei. Quando eu falava, a gente estava na câmera, eu tremia e chorava tanto que meus joelhos batiam. Elas me ampararam muito. E são pessoas que nunca tinha visto”, conta. A sessão on-line contava a participação de outras quatro mulheres que viveram, vivem ou estão se preparando para enfrentar um processo de divórcio. Elas fazem parte do projeto “Se podar, a gente brota”, idealizado por uma advogada de direito de família e três psicólogas. O primeiro encontro ocorreu em 17 de junho.
O estranhamento inicial que Ana sentiu ao abrir seu coração para pessoas desconhecidas foi quebrado pela empatia. “Tinha uma mulher da Flórida (EUA)... Ela virava pra mim e falava: ‘Nossa, eu queria poder estar aí para te abraçar’. Engraçado que uma frase tão pequena foi que me deu forças para ir dormir tranquila”, recorda Ana Flávia. Duas semanas após a primeira reunião, ela consegue entender o que viveu. “Foi um destrave. Era como se fosse uma mangueira entupida e, quando eu resolvi falar, tudo saiu. Destravou tudo”, comenta. Para ela, o acolhimento foi transformador. “Meus problemas não mudaram. O que mudou fui eu. Quando entendi que ali estava sendo recepcionada por pessoas que entendiam minha dor, por mais que o caso não fosse o mesmo, isso me deu um alívio”, afirma.
"Eu tremia e chorava tanto que meus joelhos batiam. Elas me ampararam muito"
Ana Flavia Couto, sobre o primeira vez que falou sobre sua separação no grupo
“A dor de perder um amor, de dar novo significado ao seu papel social, tudo é muito solitário. Tive uma cliente que falou que se sentiu ‘expulsa da pracinha’. Agora, com a pandemia, as coisas pioraram”, conta a advogada Gabriella Sallit. Em março, quando o avanço da COVID-19 forçou o distanciamento social no país, ela se sentiu ainda mais preocupada com mulheres que passaram a viver confinadas em um relacionamento que já havia se esgotado ou na solidão do divórcio.
“Os conflitos entre casais aumentaram, mas o acesso ao Judiciário e aos advogados diminuiu, assim como a possibilidade de coisas práticas, como procurar um apartamento e mudar de casa”, comenta Sallit. Foi aí que ela procurou as psicólogas Lívia Guimarães, Júlia Oliveira e Junia Diniz e, juntas, criaram o projeto de apoio a mulheres em processo de divórcio.
A essência do projeto está no apoio e na troca de experiências. Segundo a psicóloga Lívia Guimarães, não existe fórmula pronta para solução dos traumas, perdas e mudanças de uma separação. O que os encontros dessas mulheres têm mostrado é que contar e ouvir histórias umas das outras tem trazido alívio e força para enfrentar dores individuais. “Uma palavra, mais uma palavra, mais outra palavra favorecem a construção de um novo laço social, oferecendo a oportunidade de cada mulher dar um destino singular àquilo que foi coletivamente produzido”, ressalta a profissional.
Poda
Assim como as palavras de conforto e o abraço enviados pela jornalista Natália Machado, de 32, da Flórida, nos Estados Unidos, chegaram como um afago a Ana Flávia, ela também encontrou apoio no grupo. “O diferencial da terapia em grupo e on-line é que a gente consegue juntar mulheres de vários lugares, com várias realidades. Por isso que me interessou tanto e achei tão rico”, conta Natália, que se separou há quase dois anos, mas vive ainda os dilemas da reconstrução social. “Acho muito lindo este título ‘Se podar, a gente brota’, porque é exatamente isso que eu senti. Apesar de eu e meu meu ex-marido termos uma relação boa, sinto que eu estava sendo podada no relacionamento”, avalia.
Após o corte, a renovação
A escolha do lema “Se podar, a gente brota” como nome do grupo não foi por acaso. “As podas são ações necessárias à planta, servindo para impulsionar o desenvolvimento, para crescer de forma vigorosa e se proteger de pragas e doenças”, explica Júlia Oliveira, outra psicóloga do projeto. A analogia com o corte de ramos de vegetais norteia as fases da terapia. “A literatura nos ensina que existem três tipos de poda: de formação, de renovação e de floração”, enumera.
A primeira etapa, na poda de formação, segundo ela, é atribuída ao momento de enxergar que algo que não vai bem no relacionamento. “O sujeito olha para si e faz um corte: faz uma separação do outro, passando a se enxergar como um sujeito apartado, com desejos próprios. Tenta a partir daí se encontrar na trama construída pelo casal. É o início de um resgate de si”, explica.
Em um segundo momento, vem a renovação. A psicóloga explica que, nessa fase, a pessoa vivencia o seu luto pela separação, cada um com seu próprio tempo. “O luto da separação é um processo psíquico importante de ser realizado. Somente a partir dele o sujeito conseguirá se separar de fato daquele objeto ou situação e conseguirá estar novamente disponível para eleger outros objetos de afeto”, ressalta.
Por fim, vem a floração, etapa que marca a superação e o recomeço. “O sujeito elabora a sua separação. Faz as pazes com suas perdas. Encontra saídas para o seu mal-estar, faz apostas, sente-se confortável em eleger novos objetos de amor. Floresce para a vida novamente”, conclui, a profissional.
De desnorteada a orientadora
A engenheira civil e decoradora Hulla de Kássia de Oliveira, de 45 anos, conseguiu completar todas as etapas após dois anos de divórcio. Hoje, ela participa do grupo para compartilhar sua história de superação e recomeço com outra mulheres. O casamento de 10 anos acabou no fim de 2017. “Eu me encontrei divorciada, desempregada, com um filho pequeno. Aí, pensei: ‘Gente, o que eu vou fazer da minha vida?’” recorda.
Na família, terapia e grupos de ajuda, ela conseguiu o apoio e a força de que precisava. “Você tem que se resgatar, resgatar sua autoestima e cuidar da sua cabeça”, comenta. A corrida foi outra parceira que encontrou após a separação. Nos dias tristes, a atividade física ao ar livre era sua válvula de escape. Para as colegas de terapia, ela indica o mesmo. “Tire meia hora para você, nem seja para uma caminhada. Coloque um fone de ouvido e esqueça de tudo”, aconselha a veterana.
Hoje, ela e o ex-marido têm uma boa relação e conseguem se unir novamente no cuidado com o filho. E ela decidiu participar do projeto a convite de uma das psicólogas, para mostrar a outras mulheres que é possível vencer as perdas e dores de uma separação, mesmo com uma sociedade que ainda as oprime.
Se por um lado não existe receita para tratar os envolvidos em um processo de separação, por outro, é sim possível observar um perfil comum. “Se há algo que podemos observar naqueles que iniciaram a jornada de separação, naqueles em processo e naqueles que superaram esse acontecimento foi que a maioria deles volta o olhar para si e se reconhece enquanto sujeitos desejantes”, define a psicóloga Junia Diniz.
“Se podar, a gente brota” tem grupos semanais de terapia. As sessões remotas são organizadas pela Cativar – Espaço Familiar. “Gostaríamos de ressaltar primeiramente que divórcio é algo que se resolve no âmbito jurídico. Tratamos aqui de separações”, define Junia. Os grupos têm, no máximo, cinco participantes, acompanhadas por duas psicólogas.