Jaíba e Janaúba – Se dos profissionais de saúde depende o bem-estar e a recuperação de pacientes no atual quadro de pandemia do novo coronavírus, de uma outra categoria muito menos visível depende o oxigênio que permite que a sociedade e a economia continuem respirando, ainda que com dificuldade.
E, da mesma forma que médicos e enfermeiros, eles não puderam se manter em isolamento – e também convivem no dia a dia com o risco de contágio, por manter contato diário com milhares de pessoas Brasil afora.
Trabalhadores do setor de transportes têm lutado para cruzar ruas ou estradas do país levando mercadorias e pessoas, sempre com a ameaça de contaminação pela COVID-19 no retrovisor, ou mesmo com o risco de transportar o vírus entre diferentes municípios e estados.
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Descobriu profissionais que sofrem com preconceito de quem teme contato com eles e que se cercam de cuidados, até mesmo para não contaminar familiares. Encontrou trabalhadores que se sentem dando carona para o medo e outros que fizeram da proteção da boleia sua área de isolamento.
Ao ponto de haver entre eles quem tenha visto a ameaça se transformar em contágio real, e querer se manter em quarentena na cabine do caminhão, na beira da estrada, bem distante dos parentes.
Essas e outras histórias serão contadas a partir de hoje, em série de reportagens sobre a vulnerabilidade dos profissionais de transporte em tempos de pandemia. Entre esses brasileiros estão caminhoneiros que somam cerca de 3 milhões de trabalhadores, entre autônomos e empregados, de acordo com a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres.
Ao mesmo tempo em que exercem papel determinante na vida e na economia do país, eles testemunham problemas como a pobreza, violência e elevado número de acidentes de trânsito e encaram infortúnios como longas jornadas, péssimas condições de descanso, alimentação ruim e riscos de assalto.
Se a vida já era tensa, agora a apreensão aumentou, com a exigência de cuidados para se prevenir e para que não se transformem em “transportadores do coronavírus”.
A Carteira Nacional de Habilitação e o documento do veículo não são mais os únicos itens obrigatórios na cabine. Agora, os caminhoneiros ganharam a companhia da máscara, do álcool em gel e também da ansiedade e do medo do novo coronavírus.
Transporte de frutas e também de apreensão
Uma das grandes encruzilhadas onde esses trabalhadores se encontram fica no Norte de Minas, devido ao escoamento das frutas produzidas nos projetos de irrigação do Jaíba, no município homônimo, e do Gorutuba, entre Janaúba e Nova Porteirinha.
O risco de contágio e disseminação do vírus se agrava devido aos pontos para onde os caminhoneiros se deslocam constantemente, incluindo os grandes centros do país, exatamente onde a pandemia mais se alastrou e mais ceifou vidas.
Segundo a Associação dos Fruticultores do Norte de Minas (Abanorte), semanalmente saem da região cerca de 600 caminhões carregados de banana, a maioria tendo como destino Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro.
Um fator ainda mais preocupante é que a maior parte das cargas é descarregada nas centrais de abastecimento dessas metrópoles, pontos de grande aglomeração de pessoas.
Transportadores de frutas revelam o temor e as mudanças de hábitos, ficando separados, por exemplo, dos carregadores, e passando maior tempo isolados nas cabines. “Não temos mais aquela liberdade de ficar junto de outras pessoas, pois todos precisam se proteger. Acabaram aquelas ‘farrinhas’ que a gente tinha antes”, conta o caminhoneiro Ademar Aparecido de Jesus, de 45 anos, com oito de profissão, ao falar da nova realidade.
Ademar mora em Janaúba e duas vezes por semana, em média, transporta banana do Projeto Jaíba para a Central de Abastecimento do Rio de Janeiro (Ceasa-RJ), na capital fluminense, que ainda tem elevada incidência de casos da doença respiratória. “No princípio, foi um susto. Fiquei muito preocupado com minha família. Passei 15 dias sem ver meus pais”, relata Ademar.
Ele se recorda também das dificuldades enfrentadas no início do isolamento social, quando foram fechados os estabelecimentos na beira das estradas, incluindo restaurantes e pontos de parada. “Tivemos que cozinhar junto do caminhão. Até para conseguir água ficou mais complicado”, destaca Ademar.
Mesmo se cercando de todos os cuidados, ele conta que no retorno de cada viagem o coração aperta, com o receio de carregar o vírus e contaminar familiares. Além da mulher e dos três filhos, uma grande preocupação é com os pais, que integram o grupo de risco – o pai Domingos Romualdo, de 75; e a mãe Claide Maria, de 68, também moradores de Janaúba.
A apreensão aumentou ainda mais depois que duas irmãs foram contagiadas pela COVID-19, ambas moradoras de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, cidade que só perde em número de casos para Belo Horizonte. “Mas, graças a Deus, elas foram curadas”, comemora.
Doença, quarentena e viagens perdidas
O caminhoneiro A., morador de Montes Claros, no Norte de Minas, já conta 38 dos seus 57 anos nas estradas Brasil afora, fazendo do serviço também um prazer. Mas, em uma viagem no interior de Goiás, na primeira quinzena de maio, percebeu que algo estava errado. “Senti muito cansaço ao tirar as lonas da carreta. Depois, senti um pouco de dificuldade para respirar. Aí veio o diagnóstico: fui contaminado pelo coronavírus”, relata.“Não tenho a mínima ideia sobre como e onde me contaminei, pois estava me cuidando, usando máscaras, luvas e álcool em gel”, afirma o caminhoneiro, que não chegou a ficar internado, mas teve de permanecer 17 dias em isolamento até se recuperar.
Ele conta que o diagnóstico veio em um exame médico depois de voltar para a casa. Disse que gosta tanto da estrada que queria passar essa fase de isolamento na cabine do caminhão, no estacionamento de um posto de combustíveis, na beira da estrada. “Mas a família não aceitou e me levou para casa”, afirma.
O caminhoneiro relata que, após a doença, sofreu preconceito, a ponto de perder fretes de duas cargas. “Depois de ficar sabendo que eu tive a doença, o fornecedor passou o serviço para outro prestador de transporte”, lamenta.
“Não me chateei com isso. Todos têm medo de se contaminar e, com o tempo, isso passa”, diz o motorista. Mesmo assim, pediu anonimato, para se resguardar de novos constrangimentos e prejuízos. “A discriminação é muito grande”, avalia.
Ele afirma que, mesmo depois de recuperado, ainda sente efeitos colaterais da doença. “Estou rodando depois de ser liberado pelos médicos. Mas ainda sinto um pouco de cansaço, tosse, dores musculares e, às vezes, garganta seca”, descreve, certo de que a categoria está sempre exposta à contaminação do coronavírus.
Motoristas ficam separados de outros trabalhadores
Diante dos riscos da COVID-19, os trabalhadores do transporte viram a rotina mudar também nos locais em que carregam suas mercadorias. Nos projetos de irrigação do Gorutuba e Jaíba, no Norte de Minas, foi adotada uma série de medidas contra transmissão do coronavírus entre os trabalhadores das áreas de plantio, incluindo o uso de máscaras e de outros equipamentos de proteção individual (EPIs). Uma delas é o distanciamento entre os caminhoneiros e outros funcionários, inclusive durante as refeições.
Em todas as áreas de produção de banana, os cuidados em relação aos transportadores mereceram atenção maior ainda, já que são eles que viajam para os lugares de maior incidência do coronavírus. “Fazemos todo o esforço para evitar que os caminhoneiros sejam vetores da COVID-19 e tragam o vírus para os demais colaboradores”, afirma Rodolfo Rebello, diretor-administrativo da Associação dos Fruticultores do Norte de Minas (Abanorte).
Além da orientação para que motoristas mantenham distância dos demais trabalhadores, tem sido oferecido material de higienização para os funcionários.
Rebello lembra que, mesmo que não tenha interrompido a produção e o transporte em nenhum momento, o setor de frutas também foi atingido pelo isolamento social e pela pandemia, sofrendo queda de 30% nas vendas, devido ao fechamento de pequenos pontos de comércio e paralisação das atividades dos ambulantes, além da interrupção das feiras livres.
Testes diários e temperatura
No Jaíba, a equipe do Estado de Minas também visitou uma área da Brasnica, do empresário Yuji Yamada, maior produtor individual de banana do país. No local, onde atuam 230 funcionários, são adotadas diversas edidas preventivas, como a limitação da ocupação dos ônibus que transportam os trabalhadores e a higienização constante dos veículos. Os operários transportados também são submetidos diariamente a testes de temperatura.
A Brasnica emprega um grande número de motoristas, para uma frota de 170 caminhões que leva a fruta para as unidades da empresa nas centrais de abastecimento em diferentes partes do território nacional.
Por causa da pandemia do novo coronavírus, na área da empresa no projeto Jaíba os motoristas são orientados a permanecer em um alojamento, a uma certa distância da área de seleção e embalagem da banana, e também distanciados dos demais trabalhadores.
A separação é bem aceita por caminhoneiros como Adão Vieira de Souza, de 34 anos, morador de Janaúba e motorista da Brasnica. “Temos que tomar muito cuidado porque esse vírus não é brincadeira”, afirma, ao salientar que concordou plenamente com o distanciamento de outros trabalhadores.
Adão disse que usa máscara e álcool em gel e que ele próprio evita contato com outras pessoas ao descarregar. “Fico o tempo todo dentro da cabine do caminhão”, garante.
Preconceito nos pontos
O caminhoneiro Emerson da Silveira Marques, de 29 anos, de Janaúba, que transporta banana do Norte de Minas para o Rio de Janeiro, revela outra dificuldade que a categoria conheceu diante do avanço da pandemia da COVID-19: a discriminação. “Sofremos bastante preconceito. Dependendo do restaurante a que chegamos, o atendimento é bem diferenciado do que era antes da pandemia”, afirma.
No entendimento do transportador, que também fez da cabine do caminhão uma espécie de escudo, isso ocorre porque há quem ache que os condutores têm mais chances de propagar o coronavírus, por terem entre seus destinos lugares com maior disseminação da doença.
Mas ele revela que, até por serem seus familiares os mais vulneráveis, se cerca de todos os cuidados, cuida da limpeza e isolamento das roupas que usa, assim como do uso obrigatório de máscaras e de álcool em gel.
O motorista de caminhão Tiago Peraçoli trabalha com a mesma carga e com um destino igualmente preocupante: a Central de Abastecimento de São Paulo (Ceasesp) e Jundiaí (SP), onde mora. Ele conta que, assim que surgiu a pandemia, percebeu até entre amigos e parentes o receio de se aproximar dele, por causa do medo do coronavirus.
“Ficaram com medo de que eu pudesse passar a doença para eles, por causa dos contatos meus com outras pessoas na estrada. Aí, falei que tenho mais contato com pessoas no bairro onde moro do que na estrada, onde é quase zero o contato”, afirma o motorista. “Agora, depois que expliquei a situação, está tudo normal”, assegura.
Por outro lado, ele informa que adotou muitos cuidados com os seus familiares, especialmente com o avô, que tem 87 anos. “Fiquei três meses sem vê-lo”, conta Tiago, que é casado e pai de um filho.
O transportador sabe que precisa tomar muito cuidado por causa dos riscos que enfrenta, principalmente, na capital paulista. “Em Jundiaí é tranquilo. Mas na Ceasesp tem muita aglomeração e não tem muito uso de máscara. É um povo mais bruto e mais difícil de lidar, que não aceita muito essa precaução de máscaras, essas coisas. Chego lá, entrego a nota, higienizo as mãos e fico isolado dentro da cabine, descansando enquanto a mercadoria é descarregada”, afirma. Por cuidado, é também na boleia que faz as refeições.
Precauções semelhantes são adotadas pelo caminhoneiro Givanildo Ferreira da Silva, de 43, morador de Paraopeba, na região Central do estado, que também carrega no Norte de Minas com destino a centrais de abastecimento como a Ceasa-MG, em Contagem, na Região Metropolitana de BH.
“Infelizmente, essa doença está chegando a todos os lugares. Estou sempre lavando as mãos e evitando aglomerações. Tomo o máximo de cuidado. Uso máscaras e não aperto as mãos e não abraço mais ninguém. Não quero pegar o vírus, pois tenho filho pequeno para criar”, diz Givanildo, pai de Felipe, de 6 anos.
O caminhoneiro Marcelo Silva, de 49, é natural de Brasília e “puxa” banana de Janaúba para o Rio de Janeiro. Ele conta que, além das dificuldades, dos cuidados e dos medos, a categoria vem enfrentando um outro inimigo.
Autônomo e pai de quatro filhos, ele reclama que o mercado teve uma forte queda após a crise do coronavírus. E lamenta não poder parar, como vários trabalhadores, durante a pandemia. “Não tem jeito. A gente precisa trabalhar, porque tem que pagar a prestação do caminhão e as despesas do dia a dia.”
E, nos deslocamentos pelo país durante a pandemia, o vírus está longe de ser a única preocupação. “O índice de roubos nas estradas aumentou muito. Tem muita gente desempregada”, constata o motorista Emerson da Silveira Marques.