Mototaxistas: por que para eles correr risco virou questão de sobrevivência?
Informais sofrem com perigo próprio da atividade, ameaça aumentada de contágio pelo coronavírus e fuga de passageiros, mas seguem nas ruas para tentar se sustentar
Por Luiz Ribeiro
23/07/2020 06:00 - Atualizado em 23/07/2020 09:21
Uma legião de transportadores, de tamanho ignorado, mas que reúne milhares de pessoas, está entre as que sentem mais pesadamente os efeitos da pandemia do novo coronavírus. Sobre duas rodas, mototaxistas enfrentam a dura realidade de se equilibrar entre dois riscos: o inerente à profissão, que se expandiu sem regulamentação, e o de se manter trabalhando, em contato próximo com passageiros, para garantir o sustento de suas famílias. E ainda são gratos quando têm quem transportar, já que o isolamento social, que desacelerou toda a economia, deu também uma freada brusca no número de clientes dos motociclistas.
Na quarta reportagem da série sobre os riscos do setor de transportes durante a pandemia, o Estado de Minas revela as dificuldades que enfrenta a categoria, uma das mais vulneráveis financeiramente, que muitas vezes vê no serviço arriscado uma última alternativa ao desemprego. São trabalhadores que também têm entre seu público milhares de pessoas de baixa renda, que enfrentam o meio menos seguro, mas de custo mais baixo do que o transporte tradicional – mesmo o alternativo.
Mas, com o isolamento social e a retração na economia, muitas dessas pessoas também perderam o emprego ou entraram em regime de trabalho doméstico, deixando de usar o transporte. Os mototaxistas ainda perderam de uma hora para outra a clientela dos estudantes, já que as universidades e escolas de ensino fundamental e médio suspenderam as aulas presenciais.
Como o setor opera próximo da informalidade total, faltam pesquisas oficiais sobre os impactos que sofre diante da crise na saúde. Mas trabalhadores que enfrentam a arriscada rotina sobre suas rodas falam em queda de 50% a 60% no número de passageiros que recorrem ao serviço, presente sobretudo em cidades do Norte e Nordeste de Minas.
Paradoxo
Em Montes Claros, cidade polo de 409,34 mil habitantes na Região Norte, a falta de emprego formal empurrou para trabalhar no transporte alternativo milhares de pessoas. Não há números oficiais, mas hoje seriam mais de 10 mil, segundo os próprios mototaxistas e donos de ponto da prestação do serviço.
Continuar em um trabalho no qual a proximidade entre transportador e passageiro aumenta a possibilidade de transmissão do vírus é para eles – paradoxalmente – questão de sobrevivência. É o que relata Danilo Soares Brito, de 30 anos, há cinco tentando sobreviver como mototaxista em Montes Claros, desde que perdeu o emprego formal.
“A gente não tem outra saída. Precisamos alimentar nossos filhos. Se a criança chora, querendo o leite ou um biscoito, temos de ter pelo menos dinheiro para o básico. Aí somos obrigados a trabalhar desta forma”, afirma Danilo, casado e pai de duas crianças, de 7 e 3 anos.
Em tempos de pandemia, seu ponto não poderia ser mais exposto. Ele espera clientes em frente ao Hospital Universitário Clemente de Faria, referência para atendimento de casos da COVID-19 na cidade. Conta que faz tudo para se proteger e “não dar carona para o corona”, mas diz estar ciente da ameaça. “Acho que nosso risco é até maior do que as pessoas que trabalham no hospital. Lá, os funcionários têm os equipamentos de proteção. Nós não temos mais nada, a não ser o álcool em gel e a máscara”, compara.
Para diminuir os riscos, inclusive de levar o vírus para casa, ele reduziu o horário de trabalho: de oito para quatro horas. Também exige do passageiro o uso de máscaras, mas tem a sensação de que não é o bastante. O que ganha, da mesma forma, é insuficiente. “Minha renda caiu uns 60%. Antes, eu faturava de R$ 60 a R$ 70, diariamente. Agora, ganho de R$ 25 a R$ 30 em um dia”, contabiliza. O preço da corrida de mototáxi em Montes Claros gira em torno de R$ 7 a R$ 8.
Danilo acredita que, mesmo com todos os cuidados, a grande maioria das pessoas será contaminada pela COVID-19. “Acho que todo mundo vai ter que passar por isso um dia, cedo ou tarde”, opina. Se a impressão estiver certa, pior para pessoas como o colega Geraldo Gonçalves Silva, há 18 como mototaxista. No grupo de risco, com 62 anos e hipertenso, ele decidiu parar de transportar passageiros desde o início da pandemia, em março.
Mas, dedicando-se somente à entrega de encomendas, viu a renda cair 50%. Conta que a situação piorou tanto que passou a passar necessidade. “A gente não come mais aquilo que comia antes. Tive que cortar, por exemplo, carne e verduras”, admite Geraldo. Mesmo tendo recorrido ao auxilio emergencial de R$ 600 do governo federal, ele diz que o valor não está sendo suficiente para cobrir as despesas.
“Ainda bem que lá em casa somos só eu, a mulher e a Branquinha (uma cadelinha). Se não fosse assim, seria pior”, afirma o mototaxista, pensando nos quatro filhos, que estão casados e já não vivem com os pais. Para apertar ainda mais o orçamento, o morador do Bairro Nova Morada, em uma área carente de Montes Claros, conta que tem que contornar os gastos com medicamentos.
Assim como ele, outro motociclista do grupo de risco que não tem a opção de ficar em casa para se proteger é Valdeir Soares dos Santos, de 60 anos, 21 deles no serviço alternativo de transporte. “Assim que surgiu o coronavírus, fiquei 41 dias isolado. Depois, voltei a trabalhar, usando máscara e álcool em gel. Não tem jeito, a gente precisa sobreviver”, justifica.
Entregas ajudam a reduzir prejuízos
Menos empregos, menos dinheiro circulando, comércio e escolas fechados, mais medo. O serviço de mototáxi em cidades como Montes Claros enfrenta uma conjunção de fatores que só não é pior porque o aumento na demanda por entregas durante a pandemia compensou um pouco a fuga de passageiros.
Gerente de um ponto de mototáxi na cidade, André Luiz Ataíde acredita que o setor teve queda de 50% com a crise do coronavírus. E que o tombo só não foi pior porque os passageiros que ficaram em casa passaram a fazer mais pedidos de motofrete, em consequência do isolamento social. “Acredito que hoje temos uma demanda 50% de entregas e outros 50% de passageiros. Antes, o transporte de pessoas era muito maior”, descreve.
Mas, se o motofrete evita o contato mais próximo com os passageiros, as visitas a várias casas e a manipulação do dinheiro mantêm a preocupação em alta. O mototaxista Ederson Soares Silva, de 46, há dois na atividade informal, garante que adota todos os cuidados que pode. “Sempre uso a máscara e uso em álcool em gel. Toda hora que pego em dinheiro, higienizo as mãos. Também evito tocar o rosto”, assegura.
Sem saída
Apesar dos cuidados, há quem acredite ser difícil escapar da doença. É o que pensa Renata Cristina Ramos da Silva, de 35, que há dois anos trabalha no transporte de passageiros com sua moto, e também sofreu a queda no faturamento depois que as corridas encolheram em ao menos um terço.
A mototaxista diz que adota as medidas preventivas contra a COVID-19, exigindo também cuidados dos passageiros, como o uso de máscara. Mas crê que quase todas as pessoas serão contaminadas pelo coronavírus. “Vai ser uma gripe, não no sentido do que o (presidente) Bolsonaro falou. Mas, no sentido de que várias pessoas vão se contaminar. Umas vão morrer, outras, não”, avalia.
Sem controle
Embora tenha crescido exponencialmente ao longo das últimas duas décadas em todo o país, acelerado pelo avanço do desemprego, o serviço de mototáxi segue no escuro em relação ao universo de pessoas que atuam na atividade. Uma das dificuldades para esse controle está exatamente na informalidade do setor. Procurado sobre o assunto, o Ministério da Infraestrutura, ao qual é vinculado o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), informou que o órgão não dispõe de dados sobre o ramo, e que a responsabilidade pelo assunto é exclusiva dos órgãos concedentes em estados e municípios.
Freio na indústria de motocicletas
A produção de motocicletas no Brasil foi severamente afetada pela crise provocada pelo novo coronavírus. O setor praticamente parou em abril, quando registrou produção de apenas 1.479 unidades, queda de 98,4% em relação ao mesmo mês de 2019 (91.226 unidades) e redução de 98,6% na comparação com março de 2020 (102.865 unidades).
Os dados são da Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo). De acordo com a entidade, nos meses subsequentes houve reação, mas o impacto da pandemia ainda é expressivo: no primeiro semestre deste ano foram fabricadas 392.217 motocicletas no Brasil, redução de 27% na comparação com o mesmo período de 2019 (537.105 unidades).
A reação do segmento começou em maio, quando foi registrada produção de 14.609 de motocicletas no Polo Industrial de Manaus. Esse volume representou alta de 887,8% em relação a abril (1.479 unidades), mês em que a produção ficou praticamente paralisada, com 70% das fábricas na região sem atividade.
Ainda conforme a Abraciclo, em junho foram produzidas pela indústria nacional 78.130 motocicletas, crescimento de 427,6% em relação a maio. A recuperação fez com que junho apresentasse também alta de 14,7% na comparação com a produção do mesmo mês do ano passado (68.121 unidades).
“Esses números mostram que o setor registra uma retomada consistente. Logo no início da pandemia, Manaus foi uma das cidades mais atingidas pela COVID-19 e agora, com o retorno gradativo da produção, o segmento de motocicletas apresenta uma tendência de recuperação, cuja evolução dependerá ainda da normalização das operações de varejo”, avalia o presidente da Abraciclo, Marcos Fermanian.