Jornal Estado de Minas

COVID-19

Crise sem precedentes desafia motoristas autônomos e contratados


A pandemia do novo coronavírus alterou a vida dos trabalhadores do transporte, não importando a modalidade, seja de ônibus e táxi; seja o serviço feito por meio de aplicativos e vans. Para alguns deles, a mudança não se restringiu aos cuidados preventivos para evitar a disseminação do vírus, como o uso de máscara de proteção e de álcool em gel.



Eles passaram a enfrentar verdadeiros dramas, a exemplo da interrupção do trabalho e consequente falta de recursos para o sustento. Essa realidade é encarada por condutores de vans escolares, que perderam trabalho e renda com a suspensão das aulas, e também por transportadores autônomos, que se viram obrigados a ficar em casa devido ao fato de pertencerem aos grupos de risco para a COVID-19.

O “novo normal” dos profissionais do volante que atuam em diferentes áreas é o tema da última reportagem da série do Estado de Minas, que, desde segunda-feira, revela os impactos e os riscos enfrentados no setor de transporte em decorrência do coronavírus. Ontem foi Dia de São Cristóvão, padroeiro dos motoristas, mas a categoria, diferentemente de anos anteriores, passou em branco, sem comemorações.

É a situação do taxista José Carlos Prudêncio, de 61 anos, de Montes Claros, no Norte de Minas Gerais. Integrante do grupo de risco, não somente por causa idade, mas também por ser hipertenso e ter problemas cardíacos, desde 18 de março, inicio da pandemia no Brasil, ele parou de trabalhar. As consequências da paralisação forçada não poderiam ser piores.



“Eu tinha dívidas equivalentes ao que ganhava com o táxi e passei a não receber mais nada. Tive que tomar dinheiro emprestado de parentes para cobrir as dívidas”, diz Prudêncio, que tem 18 anos de profissão. Ele é casado e pai de três filhos adultos. “Uma delas é que está nos mantendo”, conta. Além da perda de renda, Prudêncio teve de arcar com o pagamento de multas avaliadas em quase R$ 2 mil, aplicadas por agentes da Empresa Municipal de Trânsito de Montes Claros (MCtrans).

“Não estou justificando meu erro. Porém, em todas notificações, os agentes não identificam o condutor. Como em muitas das vezes pegamos pessoas enfermas, sem condições de se locomover, temos que parar em locais proibidos”, reclama o taxista. Em outra frustração, ele tentou, mas não conseguiu receber o auxílio emergencial. “Alegaram que eu não poderia receber (o benefício) por causa da renda de uma filha que morava na minha casa, mas que não vive mais aqui.”
 
Prudêncio diz que, mesmo com tantas barreiras, vai continuar em casa, por entender que a saúde vale mais do que qualquer outra coisa. “Estou parado e está difícil. Mas prefiro ficar dentro de casa a correr risco de pegar essa doença”, admite o taxista. O medo da COVID-19 fez com ele procurasse um refúgio em um lugar pequeno, em área rural, para se afastar das aglomerações.




 
Diferentemente do colega de praça Manoel Olímpio Sales, de 80, o “Seu Nem”, como é conhecido, que mesmo integrando o grupo de risco continua na ativa, rodando com o táxi em tempos de isolamento social.  Não por vontade própria, mas porque precisa. “Tenho que continuar trabalhando, por necessidade”, diz. “Sou aposentado, mas ganho somente um salário mínimo, que não dá para viver”, completa.
 
O experiente motorista reclama que, após o surgimento do coronavírus, e com o isolamento social, escolas sem aulas e restrições no comércio, o movimento de passageiros caiu 50%. Mas, além da queda do faturamento, por causa da idade, ele também enfrenta situações constrangedoras: “um fiscal da prefeitura recomendou que eu fosse pra casa. Disse que 'lugar de velho é em casa e não na rua'. Ouvi aquilo e fiquei calado”, afirma.

Motorista de van escolar há 23 anos, Jader Gonçalves nunca viu turbulência parecida e reclama da falta de apoio dos governos (foto: Cecília Mariana/Divulgação)

TRISTEZA

Natural do “barranco” do Rio São Francisco, na cidade homônima do rio, no Norte do estado, Manoel soma 60 anos de trabalho ao volante, dos quais 30 como taxista. Antes de completar a renda com o faturamento das viagens de táxi, labutou por três décadas como motorista de ônibus, no tempo em que não existiam asfalto na região.




 
Outro taxista de Montes Claros, Eude Soares de Oliveira, de 47, continua trabalhando “normalmente” durante a pandemia, mas se preocupa com os cuidados para evitar a disseminação da COVID-19, usando máscara de proteção e álcool em gel, além de manter sempre abertos os vidros do carro. Mas, a cada corrida carrega junto o medo do vírus.
 
“Se a pessoa espirra dentro do carro, a gente fica cismado”, disse Eude, que também reclama da queda no faturamento. “Agora que melhorou um pouco. Mas, nos primeiros dias do isolamento, quando o comércio foi fechado, fizemos duas ou três corridas por dia. Antes, a média era de 10 a 15 corridas por dia.”
 
Maurílio Pereira Ribeiro, de 52, dos quais 18 trabalhando como motorista de ônibus em Belo Horizonte, afirma, que, após a chegada pandemia, tem evitado se aproximar das pessoas. “O medo sempre existe. Temos que evitar o contato com as pessoas”, diz Maurílio.




 
Ele disse que ser motorista de ônibus foi um sonho de criança e lamenta a falta de comemoração do Dia de São Cristóvão neste ano, por causa pandemia. “Em relação aos anos passados é muito triste. Nunca imaginamos uma situação dessa, sem comemorações”, lamentou.
 
Condutor de ônibus em Montes Claros, Sandro Ribeiro Benício, de 33,  dos quais quatro na profissão, relata que sente o pior efeito da pandemia do coronavírus ao chegar em casa, após a cansativa jornada de trabalho. “Como tenho contato com muita gente, ao chegar em casa fico com medo de me aproximar dos meus filhos. Preciso evitar o risco de contaminação”, diz Sandro, que é pai de dois garotos, de 4 e 2 anos.

 
Em contato constante com passageiros, o condutor Sandro Benício enfrenta diariamente o medo de se aproximar dos filhos (foto: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)

Com dívidas e incertezas

Redução do faturamento, medo, insegurança, apreensão. Há uma parcela de trabalhadores do transporte que enfrenta consequência da pandemia pior do que esses percalços: a interrupção do trabalho por não ter para quem prestar o serviço. Essa a situação dos donos e motoristas de vans escolares, sem atividade desde o inicio da crise já que as aulas foram suspensas devido ao isolamento social.




 
Sem trabalhar há mais de quatro meses, Jader Gonçalves da Silva, motorista de van escolar, não tem receio de dizer: “A gente não consegue mais fazer uma feira completa. Estou sem dinheiro para comprar roupas e outras despesas”. Ele recebeu o auxílio emergencial do governo, mas resume: “Não deu pra nada”. Morador de Montes Claros,  trabalha com o transporte escolar há 23 anos e diz que nunca imaginou que enfrentaria uma crise como a atual.
 
Antes da chegada da pandemia, o motorista transportava 30 alunos por dia, pela manhã e à tarde. Ele conta que a crise afeta muitos companheiros de profissão. Montes Claros tem 200 veículos cadastrados no transporte escolar. A categoria enfrenta dívidas, de acordo com Jader Gonçalves.
 
“Para muitos motoristas, a incerteza é se haverá a possibilidade de pagamento da próxima parcela que vence da compra do seu veículo, o seu instrumento de trabalho; para outros, a incerteza é com o pagamento de uma dívida com o banco”, lamenta Jader, que apela ao poder público por ajuda à categoria. 





Luta contra o preconceito

A caminhoneira Vera Lúcia Duarte, de 60 anos, mais conhecida como Rosinha, como outros trabalhadores do transporte enfrenta os efeitos da pandemia do coronavírus, com o componente adicional da discriminação. Durante o isolamento social, sofreu resistência para descarregar em um terminal. “Não queriam deixar eu entrar no local ao saberem da minha idade. Tive que ficar esperando três dias para descarregar a mercadoria”, afirma.

Com experiência de 35 anos na profissão e, apesar dos tempos atuais de empoderamento feminino, Vera Lúcia tem ainda pela frente o grande desafio de vencer o preconceito contra a mulher na estrada. “Enfrento o preconceito, sim. Em vários lugares ainda existem até empresas que têm uma certa resistência contra a mulher”, afirma a motorista, que é gaúcha, mas está sempre percorrendo as rodovias pelos diferentes cantos do Brasil, tendo como rota a BR-251, elo entre Montes Claros e a Rio-Bahia (BR-116), no Norte de Minas.

Ela ressalta que os próprios motoristas discriminam a mulher. “Existem uns caras bobões, que quando veem (pelo retrovisor) que tem uma mulher (no carro de trás) querendo ultrapassar, apertam o pé no acelerador e não deixam  passar”, relata. Uma grande dificuldade que Vera Duarte enfrenta em suas andanças pelo país é a falta de banheiro femininonas paradas ao longo do caminho.





Transporte arriscado


Histórias envolvendo riscos e temores dos profissionais de um setor essencial da vida do país, o de transporte, durante a pandemia do novo coronavírus foram contadas pela série de reportagens que o Estado de Minas publica desde segunda-feira.

As matérias relataram o cotidiano de caminhoneiros que trafegam por áreas em que existe alto índice de contágio e o crescimento dos roubos de cargas. A apreensão dos condutores de ambulâncias e a condição precária dos mototaxistas, trabalhadores informais, também são dramáticas, assim como o medo e os cuidados nas estações de metrô e trens.

Os desafios dos motoristas do transporte público urbano chegam até a agressões por passageiros. Contudo, a série também mostrou os casos de superação e expectativa num futuro melhor.