Jornal Estado de Minas

JULGAMENTO NA INGLATERRA

Tragédia de Mariana: 200 mil em ritmo de espera por ação internacional


Manchester – Drama que se prolonga desde 2015 e um mês de espera esperançosa. No maior desastre ambiental do Brasil, o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, a técnica em enfermagem Jaqueline Aparecida Dutra, de 43 anos, perdeu o marido. Vando Maurílio dos Santos, de 37, era terceirizado da Samarco, operadora da represa de rejeitos. “Depois disso, lutei sozinha pela vida do meu filho, que tem paralisia cerebral, por quatro anos, até perder a batalha em 2019. A Fundação Renova se importa mais com objetos do que conosco”, desabafa. O corpo do marido foi o 17º a ser encontrado – uma das 19 vítimas ainda está desaparecida. “A gentetem esperança que seja feita justiça. Se não aqui no Brasil, que seja no exterior. É preciso que se aprenda com isso para não repetir esses desastres”, afirma a viúva.





Em Conselheiro Pena, sem reconhecimento, João Vallezany, de 87, pai do pescador atingido José Vallezany, que morreu há dois anos, definha sem receber qualquer pensão, auxílio ou indenização, para desespero da família humilde. “Só queria entender por que cortaram o benefício do meu irmão. Meu pai era completamente dependente dele. Tinha de ser indenizado e não foi, estamos contando com Deus para que ele não morra também”, diz Kelly Vallezany, de 46, filha do senhor doente.

Ligadas pelos efeitos do desastre de 2015, as duas famílias estão entre os cerca de 200 atingidos que depositam suas esperanças em um ponto em comum: a resposta sobre a aceitação ou não pelas cortes do Reino Unido de ação proposta contra a BHP Billiton, que deve ser conhecida até setembro. Ao lado da Vale, a multinacional inglesa e australiana controla a Samarco, que operava o barramento que se rompeu em 5 de novembro de 2015, matando 19 pessoas e deixando um rastro de destruição ao longo da Bacia do Rio Doce, onde foram despejados 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. Junto com estados e a União, as empresas formaram a Fundação Renova, para executar as ações de reparação, indenização e compensação de danos provocados pelo rompimento.

Os atingidos são representados pelo escritório PGMBM, que é formado por ingleses, americanos e brasileiros. De acordo com o sócio administrador do escritório, o advogado Tom Goodead, após os argumentos dos dois lados terem sido ouvidos, em audiências iniciadas em 22 de julho e finalizadas na sexta-feira, resta agora esperar pela decisão do juiz, sir Mark Turner. “Estamos muito otimistas. Vamos conhecer a decisão antes que ela seja formalmente transmitida na Corte. Haverá mais uma audiência para isso. Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde as sentenças são bastante resumidas, no Reino Unido será um longo julgamento. Ouviremos em setembro, acredito, a decisão do juiz (sobre a admissibilidade do processo), seguida dos argumentos de cada lado, que precedem uma eventual sentença. Os dois lados podem e devem recorrer de qualquer que seja a decisão. Mas estamos muito otimistas”, afirma.





Desde 2018, ao longo dos 600 quilômetros da Bacia do Rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, os advogados reuniram representantes legais de atingidos, depoimentos, avaliações de especialistas, pareceres legais, documentos e relatos para demonstrar que a Justiça no Brasil se arrasta e não garante a total reparação aos atingidos.

Entre 22 e 31 de julho, o escritório desafiou o corpo legal da maior mineradora do mundo, a BHP Billiton, no Centro de Justiça Cível de Manchester, no Noroeste da Inglaterra, defendendo que a companhia pode ser processada pelos danos aos atingidos. A concepção do PGMBM é de que os atingidos que movem ações no Brasil e na Inglaterra são diferentes ou requerem reparações diversas ou suficientes ante ao que obtiveram ou poderão obter por meio da Justiça brasileira. Segundo os advogados, é direito de seus clientes processa a BHP Billiton na sede da corporação, na Inglaterra, sendo que a empresa não e ré no Brasil.

ABUSO JURÍDICO

Do outro lado, a multinacional expôs os motivos pelos quais considera que um processo na Inglaterra seria um abuso jurídico e sobreporia os já em curso no Brasil, esvaziando a Fundação Renova e suas 42 ações em prática, além de dois acordos. O primeiro dos acordos foi o Termo Transacional de Ajuste de Condutas (TTAC), assinado com a União e os estados, prevendo R$ 20 bilhões de reparação. O segundo, o TAC da Governança (GTAC), abarcou uma ação do Ministério Público Federal (MPF), no valor de R$ 155 bilhões, processos civis públicos e individuais na Justiça brasileira.





A BHP tentou a todo momento desqualificar a ação. Afirmou tratar-se de “perda de tempo”, que que teria um “custo irrecuperável” para a empresa e para a corte. “Para a BHP, a Justiça brasileira e a Fundação Renova estão em melhor posição para atender aos pedidos que surgem sobre os eventos que ocorreram no Brasil e estão sujeitos à lei brasileira, além de já possuírem considerável experiência em lidar com esses pedidos”, defenderam.

Vidas marcadas pelo desastre

Antes do rompimento da Barragem do Fundão, Jaqueline Aparecida Dutra, de 43 anos, e Vando Maurílio dos Santos, de 37, moravam em Itabirito e tinham uma rotina já apertada, com ele trabalhando na Samarco, em Mariana, e os dois tendo de levar o filho Leonardo, de pouco mais de 5 meses, para atendimentos em Belo Horizonte, uma vez que o menino nasceu com paralisia cerebral e precisava de muitos tratamentos para viver. Depois do rompimento, a luta de Jaqueline ficou ainda mais intensa, com a procura pelo marido desaparecido entre os rejeitos e a necessidade de se dedicar sozinha ao filho.

Mesmo depois de o corpo do marido ser localizado, o 17º dos 18 encontrados – um ainda está desaparecido – ela mal pôde viver o luto. “Meu filho piorou e teve de ficar internado por um ano num Centro de Tratamento Intensivo (CTI). Fui morar com ele. O Leonardo só teve alta quando praticamente montei um CTI dentro de casa. Foi mais um ano de batalha, até que em 2019 nós perdemos essa luta e o Leonardo morreu”, lamenta a mãe.





“O que outras viúvas e eu temos visto é a Renova e a Samarco tendo mais consideração por objetos, como fogões e geladeiras, do que pelas vidas que eles levaram. A gente espera que seja feita justiça. Se não aqui no Brasil, que seja no exterior. É preciso que se aprenda com isso para não repetir Fundão e Córrego do Feijão”, afirma a viúva, numa referência ao desastre de Brumadinho, em 2019.

Esse mesmo sentimento de abandono atormenta Kelly Vallezany, de 46, que tira recursos de onde não tem para manter o pai vivo, depois que João Vallezany, de 87, acamado e que precisa de oxigênio, perdeu o filho pescador, de quem era totalmente dependente. “Não temos apoio de ninguém. Quando cortaram o benefício do meu irmão após sua morte tiraram a única renda do meu pai, além de terem destruído toda a comunidade pescadora que existia por aqui. São muitos remédios, muitas condições de pagamento que vão além do que eu consigo. Só o refil de oxigênio dele custa R$ 140”, reclama.

Otimismo entre prefeitos

Depois de encarar 14 dias de quarentena, uma vez que brasileiros precisam ser isolados ao ingressar no Reino Unido devido à situação da pandemia da COVID-19 no Brasil, os prefeitos de Mariana, a cidade mais arrasada pelo rompimento da Barragem do Fundão, Duarte Junior (Cidadania), e do município de Rio Doce, Silvério da Luz (PT), dizem regressar confiantes para o Brasil após as audiências para tentar emplacar processo contra a BHP Billiton, em Manchester. “O sentimento é o de dever cumprido. Fizemos uma quarentena, num quarto de hotel muito desconfortável, mas estritamente como foi determinado pela legislação. Participamos todos os dias das audiências em Manchester. E voltamos com muita confiança”, disse Duarte Junior.





Os dois enfrentaram momentos de tensão, como quando os advogados da BHP questionaram o tempo de quarentena cumprido por eles. Ambos estavam cobertos pela legislação que permite atender a questões jurídicas e ainda realizaram testes de COVID-19, com resultados negativos para participar das audiências. “Foram dias difíceis. Principalmente no início, quando praticamente só a parte contrária (BHP) se posicionava. Tínhamos a impressão de que o juiz não estava entendendo bem o que estava sendo proposto e por quê. Pudemos ajudar os nossos advogados trazendo mais informações. Mas, no final, saímos com a confiança e a certeza de que o juiz entendeu o motivo de estarmos aqui e agora é aguardar a sua decisão com relação à jurisdição”, disse o prefeito de Mariana.

O mesmo alívio sentiu Silvério da Luz, prefeito de Rio Doce. “O primeiro passo foi dado. Saímos com a certeza de que o juiz entendeu como as coisas estavam acontecendo ou não no Brasil. Fica a  ansiedade sobre  a decisão, mas a esperança é grande de que consigamos trazer para o Brasil a reparação que os atingidos merecem”.

audima