Com os olhos de todo o planeta voltados para laboratórios, à espera da confirmação da descoberta de uma vacina eficaz contra o novo coronavírus, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, surpreendeu o mundo na semana passada ao declarar que seu país foi o primeiro a registrar um imunizante e declará-lo pronto para uso. Um anúncio que foi recebido com reservas por especialistas, como o epidemiologista José Geraldo Leite Ribeiro, considerado umas referências nacionais em epidemiologia e vacinação e professor da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana (Faseh). Em entrevista ao Estado de Minas, o médico considera arriscado aplicar a substância a toda a população, sem que as fases de testes estejam esgotadas, e faz uma análise das pesquisas e perspectivas na área.
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Na Rússia, o instituto de pesquisa Gamaleya, parte do Ministério da Saúde, lançou um ensaio de fase 1, de uma vacina chamada Gam-Covid-Vac Lyo. O presidente da Câmara Alta do Parlamento da Rússia anunciou que o país poderia iniciar a produção de vacinas até o fim do ano. Depois, Vladimir Putin divulgou a aprovação da vacina antes do início da fase 3.
“Para a vacina russa, falta ainda a fase 3. A sensação é de que o que governo da Rússia está chamando de vacinação em massa provavelmente é o princípio dessa etapa, quando a vacina será avaliada quanto à real segurança e eficácia. Sem essa fase concluída, seria muito arriscado usar a vacina na população como um todo”, avalia o professor José Geraldo Leite Ribeiro.
O especialista detalha as vacinas que mais interessam ao Brasil. A que está em desenvolvimento pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, prevê convênio com a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) para produção e fornecimento futuro para o país. Essa fórmula será comercializada pela farmacêutica AstraZeneca e Bio-Manguinhos (braço da FioCruz voltado para tecnologia em imunobiológicos).
“Ela usa um adenovírus de chimpanzé como vetor dos antígenos para o coronavírus. Se mostrou bastante esperançosa nas fases 1 e 2. É uma vacina inativada, então, provavelmente, poderá ser utilizada em pacientes com comorbidades (doenças associadas), mas precisamos aguardar a fase 3”, alerta o epidemiologista. Neste caso, há dúvida se a vacina seria aplicada em dose única ou em duas doses.
A vacina em análise pela Sinovac Biotech, empresa biofarmacêutica chinesa, também prevê convênio com o Instituto Butantan, centro de pesquisa biológica de São Paulo, para recebimento, condução da fase 3 e futura fabricação. “Esta é uma vacina de vírus inativado, com adjuvantes (substâncias químicas para aumentar a imunogenicidade). Bastante clássica. Algumas vacinas semelhantes, de rotina, já foram utilizadas. Também se mostrou promissora nas fases 1 e 2, mas é preciso concluir a fase 3”, pontua o especialista. A ideia é que seja ministrada em duas doses, com intervalo de 15 dias entre elas.
Outra substância que também passará pela fase 3 no Brasil é a desenvolvida pela união da BioNTech, empresa alemã de biotecnologia, a farmacêutica multinacional Pfizer e a Fosun Pharma, farmacêutica da China.
Eficácia monitorada
Segundo a agência reguladora em saúde norte-americana, a Food and Drug Administration (FDA), uma vacina precisaria proteger pelo menos 50% dos indivíduos vacinados para só então ser considerada eficiente. Os estudos de fase 3 são amplos o suficiente para revelar evidências de efeitos colaterais relativamente raros que podem ter passado despercebidos em estudos anteriores. Outra alternativa para acelerar o desenvolvimento da vacina é combinar as fases. Algumas estão agora em testes associados de fases 1e 2, por exemplo, nos quais são testadas pela primeira vez em centenas de pessoas.
Finalmente, as agências reguladoras em cada país revisam os resultados dos ensaios e decidem se aprovam ou não a vacina. Durante uma pandemia, uma vacina pode receber autorização de uso de emergência antes de obter a aprovação formal. Depois que uma vacina é licenciada, os pesquisadores continuam monitorando as pessoas que a recebem e verificando o tempo de proteção. Entre as vacinas em elaboração no mundo, 135 estão na fase pré-clínica, 20 na fase 1, 11 na fase 2, oito na fase 3 e duas aprovadas para uso emergencial e limitado.
“As vacinas contra o SARS-CoV-2 (novo coronavírus) tiveram como ponto de partida outras já desenvolvidas contra a síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS), uma doença diferente causada por outro tipo de coronavírus, e há uma aceleração nesse sentido. As fases 3, em andamento em algumas pesquisas, são importantes para dizer sobre segurança e eficácia das substâncias. As agências que, ao fim, liberarão essas vacinas, devem ter completa liberdade para avaliar todos os estudos, sem interferências econômicas e políticas”, afirma o epidemiologista. Para ele, a FDA, nos Estados Unidos, e a brasileira Anvisa, são agências confiáveis nesse sentido.
O Murdoch Children's Research Institute, na Austrália, está conduzindo um ensaio de fase 3, entre outros em andamento, para verificar se a vacina BCG (sigla para vacina do bacilo Calmette-Guérin), desenvolvida no início de 1900 para combater a tuberculose, também consegue defender o organismo parcialmente contra o coronavírus. Sobre substâncias que não protegem diretamente contra a COVID-19, como a BCG e a tríplice viral, José Geraldo Leite Ribeiro diz que a esperança é de que elas, ativando o sistema celular, surtam resultados satisfatórios.
Saúde se prepara para aplicação em massa
A Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais já dispõe de um plano de contingência preliminar para discutir todas as necessidades operacionais para a aplicação de uma vacina contra o novo coronavírus, quando ela estiver disponível, e para a vigilância epidemiológica dos eventos adversos resultantes, informa o epidemiologista José Geraldo Leite Ribeiro. “O mais provável é que, caso alguma fórmula seja licenciada ainda neste ano, a vacinação comece em torno de fevereiro. Até lá, é muito importante que as pessoas não relaxem. Os testes de fase 3 estão ocorrendo no Brasil exatamente porque aqui a infecção está ativa, e assim fica mais fácil comparar os grupos vacinados e não vacinados. E, com a infecção ainda acelerada, não podemos abrir mão de todos os cuidados”, reforça.
O epidemiologista cita mais uma vacina tida como promissora pelos pesquisadores. Produzida nos Estados Unidos pelo laboratório Moderna, é similar à substância em desenvolvimento pela BionTech/Pfizer/Fosun Pharma, e também deve entrar na fase 3 de testes. “É muito provável que seja comercializada para os Estados Unidos e, talvez, pela Organização Mundial da Saúde. É preciso aguardar para saber se teremos acesso a essa vacina”, acrescenta.
Na China, o imunizante do grupo farmacêutico Sinopharm tem semelhança com o produzido pela Sinovac. Como José Geraldo explica, é também uma vacina inativada feita com o vírus inteiro morto, com adjuvantes. Já foram publicados os testes das fases 1 e 2, com bons resultados, em termos de segurança e imunogenicidade, e começarão os ensaios da fase 3. “O desafio é que consigam realizar a fase 3 na China, porque lá a infecção está muito lenta. Talvez tenham que se associar a algum país onde a doença esteja mais ativa”, ressalta.
A antiga BCG
O Murdoch Children's Research Institute, na Austrália, está conduzindo um ensaio de fase 3, entre outros em andamento, para verificar se a vacina BCG (sigla para vacina do bacilo Calmette-Guérin), desenvolvida no início de 1900 para combater a tuberculose, também consegue defender o organismo parcialmente contra o coronavírus. Sobre substâncias que não protegem diretamente contra a COVID-19, como a BCG e a tríplice viral, José Geraldo Leite Ribeiro diz que a esperança é de que elas, ativando o sistema celular, surtam resultados satisfatórios.
“Este instituto está testando a BCG, antes voltada para crianças, em adultos, avaliando se nesse caso também há proteção indireta para o Sars-CoV-2. Há otimistas e pessimistas. Nada disso ainda foi comprovado com um estudo aceitável, e posso dizer que, neste caso, não existe grande expectativa. Mas é necessário que os testes se encerrem”, avalia o médico.