Uma menina de 10 anos foi engravidada após ter sido estuprada pelo tio, em São Mateus (ES). O Tribunal de Justiça do estado autorizou que ela fizesse aborto. O caso ganhou repercussão em todo o país. Mesmo com autorização judicial, o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), em Vitória, se recusou a interromper a gestação alegando problemas técnicos. O procedimento foi feito no Recife. Embora seja garantido por lei o direito ao aborto em casos de estupro, a situação não é comum em hospitais do país. Em Minas, apenas uma menor de 14 anos teve a gravidez interrompida em 2020, segundo dados do DataSUS, diante de 554 adolescentes com menos de 14 anos grávidas e de 844 casos de estupro de vulnerável registrados no estado de janeiro a junho deste ano. Em média, são 4,6 casos de meninas de até 14 anos estupradas por dia no estado.
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Muito jovens
O sexo das vítimas é outro ponto que coincide nas estatísticas. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública/2019, entre os registros de estupro de vulnerável em 2017 e 2018, 81,8% das vítimas são do sexo feminino. “As meninas são mais vítimas que os meninos, em uma proporção de quase a metade”, informa a delegada. Ainda segundo o levantamento anual, o principal grupo de vitimização são meninas muito jovens: 26,8% tinham no máximo 9 anos.
Do estupro de vulnerável ao direito ao aborto, o que muita gente pode não saber é que qualquer relação sexual com menor de 14 anos é, por lei, considerada estupro de vulnerável. Está no artigo 2017-A do Código Penal Brasileiro, que diz: “Ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com menor de 14 anos”. A pena varia de oito a 15 anos de prisão. “Ainda que haja consentimento da criança, o Código Penal protege a maturidade em formação de uma adolescente. Se elas têm menos de 14 anos e uma pessoa maior manteve relação sexual e, eventualmente, ficaram grávidas, elas são, sim, vítimas de estupro de vulnerável e têm direito ao aborto”, afirma a delegada Elenice Cristine. Ela ainda acrescenta que, às vezes, a denúncia chega à polícia apenas depois que a criança ou a adolescente foi engravidada.
Permissão
Apesar da polêmica que a interrupção da gravidez no caso da menina do Espírito Santo gerou, o aborto em casos de estupro é permitido no Brasil desde 1940. São três as situações em que o procedimento é legalizado no país: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, se a gravidez decorre do estupro ou o feto é anencéfalo. Como a lei tipifica sexo com menor de 14 anos como estupro, ela, consequentemente, garante a qualquer grávida dentro dessa faixa etária o direito ao aborto legal.
O aborto legal, no entanto, seja por desconhecimento ou pressão social, não é muito praticado por quem tem direito. Em Minas, apenas em 2020, até este mês, são 554 gestantes menores de 14 anos e apenas um aborto legal realizado. Em 2019, o número de mães prematuras foi de 1.207, sendo que apenas três recorreram ao aborto médico. Já em 2018, a soma de grávidas foi de 1.262, com quatro interrupções, conforme dados da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG).
Acesso limitado e constrangimento
A psicóloga Letícia Gonçalves, especialista em atenção a pessoas vítimas de violência, diz que existe um número grande de pessoas que têm direito ao aborto legal e por inúmeras razões não o realizam. “Além das limitações mais específicas sobre o acesso ao sistema de saúde, observamos muitas práticas violentas de constrangimento, coerção e convencimento das meninas e famílias para o não abortamento”, comenta doutora em bioética.
Ela ressalta a importância de colocar a saúde mental e biológica das vítimas em primeiro lugar. “A ausência de maturação biológica, social e psíquica é incompatível com a maternidade. Forçar uma criança, que já sofreu a violência sexual, a ser mãe é uma segunda violência que pode intensificar os sentimentos de tristeza, desamparo, ruptura de vínculos sociais, entre outros, bem como, sobretudo, interromper o seu processo de desenvolvimento”, completou.
A psicóloga ressalta ainda que a gravidez é percebida tardiamente pela criança ou adolescente. “Em muitos casos em que há criança grávida e, logo, sempre em decorrência de estupro, a percepção da própria gravidez é mais demorada, por isso em muitos casos a busca pelo aborto é um pouco tardia. Mesmo a noção do funcionamento do próprio corpo ainda está em desenvolvimento”, diz a especialista.
Ativistas que atuam na defesa do direito da mulher alertam para os danos que uma gravidez na infância e adolescência pode causar. “O Brasil é o 4º país no ranking mundial de casamentos infantis e esse número está associado à gravidez precoce. O casamento infantil é responsável por 30% da evasão escolar no mundo todo. “Precisamos garantir que essas meninas tenham o direito automático ao aborto”, destaca Natacha Orestes, integrante do Sangra Coletiva.
O grupo foi responsável pela criação de um abaixo-assinado on-line, que colheu mais 600 mil assinaturas, para pressionar a Justiça do Espírito Santo a assegurar que a lei do aborto fosse cumprida no caso da menina de 10 anos grávida.
Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente (DEPCA)
Endereço: Avenida Nossa Sra. de Fátima, 2175, Bairro Carlos Prates
Telefone: (31) 3228-9000
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Vítimas de abuso têm direito ao aborto
A legislação brasileira estabelece que a vítima de estupro não precisa apresentar boletim de ocorrência para ter o direito ao aborto legal garantido. “Legalmente, ela não precisa de nada. Não precisa de boletim de ocorrência, não precisa de recomendação médica ou qualquer outro tipo de laudo”, explica a coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), advogada Juliana Alvim. Também não há limite de semanas de gestação para realização da interrupção quando a vida da mulher está em risco ou quando o feto é anencéfalo. Já em caso de estupro, a lei determina que o aborto induzido seja realizado até a 20ª semana de gestação, ou 22ª, se o feto pesar menos de 500 gramas, de acordo com o artigo 128 do Código Penal brasileiro.
O aborto em crianças e adolescentes é um procedimento cirúrgico, portanto, exige cuidados e impõe riscos às pacientes. Segundo Sara Paiva, médica ginecologista e obstetra do Hospital das Clínicas (HC-UFMG), quanto antes a intervenção for feita, menores as chances de complicações. “Os riscos estão diretamente relacionados à idade gestacional. Quando a gestação já está mais avançada, tem maior risco de infecção e complicações do próprio ato cirúrgico”, explica a coordenadora do Serviço de Atendimento de Violência Sexual do HC-UFMG.
A médica explica que os riscos são praticamente os mesmos, independentemente da idade, porém, no caso da criança e da adolescente, é preciso considerar outras especificidades. “Tem que pensar no risco de uma gestação em uma criança em que os riscos podem ser não só físicos. Ela ainda está em fase de crescimento, de maturação hormonal, maturação óssea. E, no caso de uma gestação, vai haver uma competitividade do crescimento da criança com crescimento do bebê,” ressalta. Canais de denúncia
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*Estagiária sob supervisão do subeditor Paulo Nogueira