Jornal Estado de Minas

FERIDAS DE CORPO E ALMA

Do estupro ao aborto: a difícil jornada da mulher vítima de violência sexual em Minas



No ano passado, 1.371 mulheres foram estupradas em Minas. Neste mesmo período, os hospitais do estado realizaram 136 abortos legais. Este ano, até junho, 475 vítimas procuraram a polícia para denunciar esse tipo de violência. 94 abortos seguros foram feitos em 2020. A mulher vítima de estupro tem direito, por lei, a interromper a gravidez no Brasil. Lidar com medo e vergonha, no entanto, são desafios que atravessam o pedido de ajuda, pesa os números das estatísticas para baixo e, muitas vezes, toma um tempo de decisão que é determinante no tratamento. Quem trabalha na linha de frente do atendimento a essas vítimas de violência sexual convive com o desafio de acolher, orientar e tratar essas mulheres fragilizadas.



Minas Gerais tem quase cinco estupros por dia de meninas de até 14 anos

A ginecologista e obstetra Sara Paiva trabalha há cinco anos no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG) ajudando mulheres que foram violentadas. “Um grande problema no atendimento a essas mulheres é que, infelizmente, muitas chegam em busca de assistência tarde. Isso faz com que, muitas vezes, busquem ajuda já em uma situação de gestação ou com uma infecção sexualmente transmissível que poderia ter sido evitada”, comenta a  médica, que é coordenadora do Serviço de Atendimento de Violência Sexual do HC-UFMG. Ela explica que é muito importante as mulheres, vítimas de estupro, saberem que as primeiras 72 horas são cruciais para procurar um serviço de saúde após ter sofrido violência sexual.

O Código Penal considera estupro qualquer ato que visa “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”,  em seu artigo 213, Lei 12.015, de 2009. Em Minas, no ano passado, 1.371 mulheres denunciaram esse tipo de violência. Em 2018, foram 1.622. Na capital mineira, os números também chamam a atenção: 102 até junho deste ano, 238 em 2019 e 289 em 2018, segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública. Este tipo de crime, entretanto, é um dos mais subnotificados, segundo a pasta.

A decisão pelo silêncio e, consequentemente, deixar o criminoso impune, além de reduzir os dados estatísticos, é reflexo do preconceito da sociedade que ainda insiste em culpar a mulher pela violência sexual. Isso acontece até mesmo quando elas quebram essa barreira e decidem procurar ajuda. “Percebo que é muito comum no atendimento o preconceito às mulheres vítimas de violência sexual. Eu já vi vários colegas profissionais falarem a seguinte frase: ‘Mas vestida desse jeito. É querer que seja violentada’ ou: “Mas, também, o que você estava fazendo sozinha de madrugada na rua?’”, relata a ginecologista Sara. Ela aponta que uma das dificuldades que ela encontra na profissão é exatamente a de lidar com o julgamento dos próprios colegas profissionais de saúde. “Independentemente da roupa que você usa, da cor da sua pele, da sua profissão, de estar sozinha ou não andando na rua, ninguém tem direito de fazer com você e, com o seu corpo o que você não quer”, destaca.





Em Minas, foram realizados 136 em 2019 (foto: Arte/Soraia Piva)

GRAVIDEZ É OUTRO DRAMA

Quando a violência resulta em gravidez, o quadro é ainda pior. A decisão pelo aborto legal, que é um direito da mulher violentada, ultrapassa as condições clínicas e bate em tabus sociais. “São muitas as barreiras para o acesso ao aborto legal no Brasil, para adultos, crianças e adolescentes. Além das limitações mais específicas sobre o acesso ao sistema de saúde, observamos muitas práticas violentas de constrangimento, coerção e convencimento das meninas e famílias para o não abortamento”, afirma a psicóloga Letícia Gonçalves, especialista em atenção a pessoas vítimas de violência.

São três as situações em que o aborto é legalizado no Brasil.  Além da gravidez que decorre do estupro, a intervenção pode ser realizada quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou o feto é anencéfalo. Neste ano, foram 94 abortos legais até junho, 136 em 2019 e 149 em 2018. Em Belo Horizonte, os dados fecharam em 35 até junho deste ano, 45 em 2019 e 58 em 2018, segundos dados do DataSUS. Os números, no entanto, não separam qual foi a condição do aborto.



Para a médica e obstetra Mariana Meiberg, outro fator também pesa nesses números. Ela relata que, nos oito anos que trabalhou acolhendo e tratando mulheres vítimas de estupro no Hospital das Clínicas e na Maternidade Odete Valadares, viu muitos familiares influenciarem na decisão pela continuidade de uma gravidez fruto de violência por causa de crença. “A criação religiosa deixa a questão do aborto um pouco mais difícil. A gente explica tudo, mas não é nossa função no ambulatório julgar essa paciente, julgar essa família, nossa função é acolher e ela será acolhida independentemente da decisão”, comenta.





BH tem seis unidades para  interrupção de gestação

BH conta com seis unidades de saúde no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) para fazer a interrupção legal da gestação nos casos previstos em lei. As unidades são Hospital das Clínicas/UFMG, Hospital Odilon Behrens, Hospital Júlia Kubitschek, Maternidade Odete Valadares, Santa Casa de Belo Horizonte e Hospital Risoleta Tolentino Neves. As unidades precisam ter equipe multiprofissional capacitada, para garantir que durante todo o atendimento à mulher seja assistido de maneira humanizada e que ela possa ter suas dúvidas esclarecidas sendo auxiliada na garantia de seus direitos.

Segundo a legislação brasileira, não é necessária autorização judicial ou boletim de ocorrência para realizar aborto em caso de estupro. Sendo assim, é estabelecido um procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez no hospital.

As etapas são mesmo burocráticas. Quem decide interromper a gravidez vai precisar preencher cinco termos: termo de consentimento, termo de responsabilidade e termo de relato circunstanciado em que a mulher deve descrever as circunstâncias da violência sexual que resultou na gravidez. Além disso, é necessário um parecer técnico assinado por médico, atestando a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência sexual alegada. Isso é para afastar a hipótese da gravidez decorrente de outra circunstância diferente da violência sexual.





“A única forma de a gente fazer essa avaliação é através da ultrassonografia. Com o cálculo da idade gestacional correto, podemos fazer os cálculos da data provável da concepção”, explica Sara.

Além disso, essa paciente tem que ser examinada por uma equipe da psiquiatria para fazer a avaliação de que ela está apta a se internar e participar de todo o processo. “Após a violência sexual, algumas pacientes podem apresentar transtorno de estresse pós-traumático, com alterações do humor que precisam ser controladas antes da paciente ser internada e submetida à interrupção legal da gestação”, informa.



Para a psicóloga Letícia Gonçalves, não é o procedimento de aborto seguro que causa traumas e, sim, as circunstâncias. “Não há consensos, mas, de todo modo, os estudos mais relevantes sobre este assunto indicam que o aborto, em si, não é motivador de adoecimento, menos ainda de traumas”, disse. A especialista aponta que o aspecto mais importante que gera adoecimento tem sido o estigma com que o aborto é tratado e, consequentemente, as pessoas que o realizam.





“Eu tenho estudado as moralidades que produzem este tipo de estigma e tipificado estas moralidades como violências. Não podemos afirmar, portanto, que o aborto em si possui relação causal com qualquer sofrimento psíquico, de maneira genérica e generalista. Por outro lado, podemos afirmar que quando o aborto é realizado de forma adequada e segura, tendo a mulher ou a criança uma rede de apoio e acesso aos cuidados em saúde indicados, tende a não produzir sofrimento”, diz.

* Estagiária sob supervisão do subeditor Paulo Nogueira


ENQUANTO ISSO
...Projeto orienta vítimas

Um projeto de lei em tramitação na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte sugere que mulheres vítimas de estupro que ficarem grávidas e desejem fazer aborto assistam a cenas “com demonstração de técnicas de abortamento com explicações sobre atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como a reação do feto a tais medidas”. A proposta feita pelo deputado Kleber Rodrigues (PL-RN) chama a atenção após a repercussão do caso da menina de 10 anos, que teve um aborto legal, após ser estuprada pelo próprio tio. Segundo o site UOL, o Projeto 028/2020 estabelece que, antes de uma autoridade judiciária permitir o aborto, a gestante aguardará um prazo mínimo de 15 dias em que “submeterá obrigatoriamente a atendimento psicológico com vistas a dissuadi-la da ideia de realizar o abortamento”.
 
 

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