O ensino superior a distância no Brasil ganhou força nos últimos anos e, desde o ano passado, solidificou terreno. O número de novas matrículas na modalidade remota ultrapassou aquelas do presencial, aponta levantamento da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), em parceria com a empresa de pesquisas educacionais Educa Insights. A representante do setor privado no país aponta o mesmo cenário em Minas Gerais, que, em 2018, último dado disponível, registrou redução de 3,1% na quantidade de alunos que assistem às aulas diante da lousa e aumento de 15,6% no total daqueles que optam por se formar pela tela do computador.
Os números oficiais de 2019 serão confirmados pelo Censo de Educação Superior, previsto para ser divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) no segundo semestre. Em no máximo dois anos, a expectativa é de que a educação a distância seja responsável pela maior parte dos universitários do país. E esse caminho se consolida ainda mais no cenário da pandemia. Semana passada, o MEC prorrogou até 31 de dezembro a autorização para que o ensino presencial seja substituído pelas aulas remotas por meios tecnológicos e digitais.
A estimativa da Abmes é de que em 2019 o número de novas matrículas em EAD tenha ficado em cerca de 1,66 milhão, contra 1,48 milhão da modalidade presencial. Para fazer a projeção, o estudo desenvolveu uma metodologia baseada em históricos recentes para projetar o mercado de educação superior no curto, médio e longo prazos. Foram consideradas as variações dos indicadores acima descritos entre os anos de 2014 e 2015, que apresentaram aumento de taxa de desemprego, e entre os anos de 2017 e 2018, que registraram queda na taxa de desemprego no curto prazo.
O domínio da EAD já estava no radar, sendo previsto anteriormente para 2023. Mas a pandemia do novo coronavírus, com suas consequências sociais e econômicas, terá papel decisivo também no ensino superior. É o que mostra a terceira etapa da pesquisa “Coronavírus e educação superior: o que pensam os alunos e perspectivas”, que mede os impactos da pandemia da COVID-19 nesse ciclo da educação.
O agravamento da situação econômica, com a queda do índice de emprego e renda da população brasileira, vem provocando um crescimento exponencial da EAD, que tem mensalidades bem mais acessíveis, além de maior flexibilidade para conciliar trabalho e estudo. Outro fator, também em virtude da pandemia, é o aumento da oferta de cursos de graduação 100% on-line ou híbridos (parte é feita virtualmente), considerado, mesmo em atraso, um caminho sem volta.
O diretor-presidente da Abmes, Celso Niskier, afirma que a recomendação no próprio presencial é as instituições usarem os 40% permitidos pela legislação (de aulas on-line) para que possam ter oferta mais híbrida dentro do próprio presencial. “Vamos caminhar para o fim da dicotomia entre o presencial e a EAD e vamos falar em educação mediada por tecnologia das formas mais variadas: um presencial com disciplinas on-line, um 100% on-line, algumas aulas remotas. A cultura da educação superior se preparou para esse modelo híbrido, que na nossa avaliação é o que melhor atende à distribuição socio-econômica e geográfica do Brasil”, relata.
IMPACTOS DA PANDEMIA
De acordo com a pesquisa, que ouviu 1.607 pessoas, o risco de desistir da graduação assombra 42% dos estudantes. Outros 4% acreditam que provavelmente desistirão e 2% afirmaram desistir por causa do cenário atual. Entre esses, 60% perderam o emprego. Já 52% dizem continuar os estudos independentemente da situação.
A autorização permitindo a substituição do ensino presencial pelo remoto até o fim do ano foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) de 24 de junho, por meio da Portaria 544, do MEC. Ela regulamenta ainda a realização de atividades práticas e laboratoriais e a oferta de estágios das instituições de ensino superior enquanto durar a pandemia do Covid-19.
O texto orienta que os estabelecimentos de ensino superior ficam responsáveis por definir as adaptações dos currículos para a oferta de disciplinas práticas, tanto em laboratório quanto no estágio profissional, respeitando as Diretrizes Nacionais Curriculares. As alterações curriculares devem ser comunicadas ao MEC em até 15 dias.
A edição da portaria colabora para que as instituições de ensino superior possam efetivar os planos pedagógicos de ensino híbrido e implantar inovações educacionais e tecnológicas. Graduações que tenham a previsão de atividades práticas por meios digitais no projeto pedagógico do curso serão as primeiras a ter permissão para ofertas. As demais precisam atualizar os projetos e submetê-los à aprovação para disponibilizar as disciplinas.
Três perguntas para...
Flávio Souza
professor e assessor da direção da Faculdade Arnaldo, em Belo Horizonte
Na Faculdade Arnaldo, o número de novas matrículas na modalidade EAD em 2019 ou este ano ultrapassou o de entrada no presencial?
Ainda temos uma proporção de matriculados em EAD um pouco abaixo da média nacional e o número de matriculados no ensino presencial segue sendo maior. Mas já prevemos uma mudança de cenário para os próximos dois anos.
Como a Faculdade Arnaldo imagina o cenário daqui pra frente?
Acreditamos que seja severamente diminuída tanto a oferta do tradicional ensino presencial, em que o aluno frequenta todas as atividades letivas num espaço físico determinado ao longo de uma jornada, quanto o que se entendia até então como EAD, praticamente a transposição para uma plataforma digital da experiência que o aluno teria se estivesse presencialmente. Surgirá um novo conceito de experiência de aprendizagem, muito mais personalizada, constituído de jornadas interativas, com o uso mais inteligente da tecnologia. Esse processo já estava instalado e muitas boas instituições já estavam e estão no caminho. A COVID-19, de alguma maneira, fez acelerar esse processo e até expor à luz certas deficiências que precisam ser superadas.
O caminho do EAD é sem volta? Como será o futuro da educação no ensino superior?
O número das matrículas em EAD ainda deve crescer bastante, mas não a ponto de inviabilizar a educação presencial. Nos próximos três ou quatro anos, esses números devem se estabilizar. Por outro lado, a pandemia trouxe um componente catalisador, quando o assunto é educação. De forma alguma, especialmente no ensino superior, ela se consolidará dessa maneira como vem sendo ofertada nesses tempos de exceção. O que estamos fazendo agora é oferecer uma assistência remota pelos meios legais de tecnologia de informação e comunicação. Mas, esse movimento fez a educação no ensino superior se despertar para as inúmeras possibilidades embarcadas no bom uso da tecnologia. E, para nossa grande surpresa, não houve rejeição massiva nem por parte dos alunos, nem dos docentes. O que se apresenta como cenário de agora em diante é uma hibridização da experiência do aluno, com parte no câmpus físico e no calor do contato afetivo com colegas e professores, e outra pelas mais diversas tecnologias, que vão desde a simples transmissão ao vivo de uma aula até uma visita guiada em realidade aumentada no Museu do Louvre, ou uma simulação de cirurgia cardíaca feita por inteligência artificial, recebendo comandos de um aluno a quilômetros de distância do laboratório “real”. A fronteira entre o real e o virtual tende a ficar, cada dia, mais tênue. É preciso contato humano, social, trocas presenciais, afetos. Da mesma forma que a tecnologia poderá permitir uma flexibilização do currículo, facilitar escolhas que antes não eram possíveis e tornar sonhos alcançáveis. Teremos questões éticas, filosóficas a serem debatidas. Mas esse cenário não é para amanhã. Ele já ocorre hoje, em muitas partes do mundo.