Jornal Estado de Minas

FERIDAS DE CORPO E ALMA

'Meu namorado me deu o remédio e viajou'; relatos de mulheres que fizeram aborto clandestino em MG

Carolina (nome fictício), aos 21 anos, descobriu que estava grávida do namorado. Ao dar a notícia ao companheiro, foi surpreendida com um brusco término de namoro e ameaça que mexia com traumas que ela ainda não havia superado. Ele disse que o filho cresceria sem pai, como ela cresceu. Recém-ingressada na Faculdade de Direito e com longo caminho de sonhos profissionais, ela não viu outra escolha. Ainda com cicatrizes de violência física e psicológica desse relacionamento abusivo e sob pressão do ex-namorado, resolveu interromper a gravidez de forma insegura. “Eu estava 100% desesperada, não tinha contado pra ninguém além dele. Não tenho como responsabilizar somente ele pela decisão de dar fim àquela gravidez, mas acredito que, se tivesse tido qualquer tipo de apoio dele, o desfecho teria sido diferente”, conta Carolina, que hoje tem uma menina que vai completar um ano.





O drama de Carolina é enredo de centenas de milhares de histórias de mulheres que decidem, por inúmeros motivos, interromper a gravidez que não se enquadra no perfil da legislação brasileira. Mas a criminalização não impede que 1 milhão de abortos induzidos ocorram todos os anos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde, em dado relativo a 2018.

Considera-se aborto, de acordo com a Organização Mundial Saúde (OMS), a interrupção, antes das 22 semanas de gestação, quando o feto retirado nessas condições é incapaz de sobreviver fora do útero.  São três as situações em que o aborto é legalizado no Brasil: gravidez decorrente de estupro, inexistência de  outro meio de salvar a vida da gestante, ou feto anencéfalo. Fora isso, o ato é punido com detenção de um a três anos para a mulher e de um a quatro anos para a pessoa que fizer o procedimento. A única situação em que o homem, no caso o pai, pode ser punido é se ajudar no aborto.


Carolina estava com 12 semanas quando o ex-namorado comprou o medicamento abortivo. Ele deu a ela o remédio que provoca contrações do útero para expelir o feto. Mas a primeira tentativa não funcionou e ela precisou recorrer ao medicamento novamente. Sem conhecimento de familiares, foi para a casa do ex-namorado, onde esperou pelo resultado. O corpo passou a ter reações que ela não esperava. “Comecei a ter febre muito alta, de quase 40 graus. Ele me viu passando mal, com febre e foi viajar com os amigos e inúmeras mulheres. Ele viajou e me deixou lá sozinha”, conta.





Desamparada, sem poder ir para a casa da mãe, ela procurou uma amiga quando o quadro já era crítico. A busca por ajuda médica veio quando, por fim, a situação saiu de controle. “Comecei a desmaiar, tive convulsão e febre. Aí, fui parar no hospital, tive infecção séria, perdi muito sangue e quase morri”, relembra.

Por pouco Carolina não entrou para as estatísticas das mulheres que perdem a vida ao passar por uma interrupção insegura da gravidez. Segundo o Ministério da Saúde, uma mulher morre a cada dois dias por aborto sem supervisão médica adequada. As que não morrem buscam atendimento de urgência depois de fazer um aborto inseguro.

A ginecologista e obstetra Sara Paiva, coordenadora do Serviço de Atendimento de Violência Sexual do Hospital das Clínicas (HC-UFMG), relata que é comum a chegada de mulheres com diversas complicações com o processo. “Já tive caso de paciente que chegou com infecção generalizada. Ela tentou fazer a interrupção da gestação com agulha de tricô. Essa agulha levou bactérias para a cavidade uterina, causando infecção”, conta. A mulher perdeu o útero. “Então, as complicações são muito sérias dessa tentativa de interrupção clandestina da gestação”, alerta.





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Uma em cada cinco mulheres já abortou


Pesquisadora do Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero (Anis), a antropóloga Débora Diniz conduziu uma das pesquisas que detalham o panorama e perfil das mulheres que abortam ilegalmente no Brasil. Ao discursar na audiência pública sobre descriminalização do aborto, em 2018, no Supremo Tribunal Federal, ela destacou que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez ao menos um aborto na vida, a maioria entre 20 e 24 anos, e hoje já têm filhos.

Os dados do estudo indicam exatamente o que aconteceu com Jussara (nome fictício) , hoje com 40 anos. Aos 20, ela ficou grávida, quando a sua primeira filha tinha apenas dois anos, e ela tinha um relacionamento instável com seu parceiro. A decisão de interromper a gestação foi consenso do casal. “Só de falar me dá vontade de chorar. Esse assunto é uma coisa pesada para mim”, confessa. Até hoje, 20 anos depois, Jussara carrega sentimento de culpa. “É muito triste, o neném morreu e ficou na minha barriga. Tive que vir para BH porque isso é crime. Ficamos com medo de o hospital me denunciar”, conta a mulher, que na época morava em Governador Valadares, no Leste de Minas.

No caso de Jussara, a interrupção ocorreu com 16 semanas. Ela precisou fazer acompanhamento médico por alguns meses após o procedimento porque teve inflamação no útero. “Quem fez minha curetagem foi um médico amigo da família, que falou que se outro médico fizesse o procedimento, iria comunicar à polícia porque o remédio não saiu e grudou na bolsa gestacional”, acrescenta. No caso dos abortos autorizados pela lei, a comunidade médica recomenda que a intervenção seja feita até 12 semanas de gestação, período em que o risco de complicações é quase nulo.





VERGONHA Depois desse momento, a vergonha e o silêncio passaram a conviver com a nova mulher que nasceu naquele procedimento. Jussara diz que não conseguiu conversar sobre o aborto ilegal com ninguém além do parceiro. “No início, senti muita vergonha. Ainda não consigo falar. Quando meus tios me buscaram no hospital, minha vontade era sumir, não sabia onde enfiar minha cara de vergonha. Mas minha família é de verdade, me apoiou. Mas meu pai até hoje não sabe”, disse.

A psicóloga Letícia Gonçalves, especialista em atenção a pessoas vítimas de violência, explica que um sistema de crenças da sociedade contribui para a estigmatização do aborto, até mesmo nos casos em que as mulheres têm autorização legal. Ela informa que, em seus estudos, identifica muitas mulheres que fizeram julgamento social e moral. “O sofrimento vai vir muito vinculado a esses aspectos de introjetar certa norma cultural e ter a percepção de que não cumpriu com essas normas. Isso produz um sentimento de menos-valia e de não merecimento de partilhar de um certo pacto social de que, primeiro, um feto, já é uma vida, logo, deve ser compreendido como uma criança”, avalia.


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A criminalização do aborto


A Lei brasileira é mais restritiva do que a de todos os países do norte global (estados unidos, Europa) Mesmo no sul global (onde o Brasil é localizado) há muitas legislações mais avançadas incluindo China, India, África do Sul, Argentina e Colômbia, segundo a advogada Juliana Alvim, coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG. “Uma das exceções básicas para realização do aborto, mesmo em lugares em que é mais restrito,  é para proteger a saúde da mãe. ''No nosso caso é a vida da gestante, que é muito mais restrito do que  a saúde em geral”, explica a professora.





Ela destaca que um ponto questionável na criminalização é a desigualdade de responsabilidade do ato entre os envolvidos. “Uma crítica tradicional das autoras feministas é justamente esta: que a criminalização do aborto é uma forma de reduzir a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres, e só das mulheres, e de instrumentalizá-las a favor de um certo entendimento de qual seria o papel da mulher na sociedade”, aponta a advogada.

Nessa lógica de não equidade, Juliana destaca que os homens, por sua vez, não estão sujeitos nem às consequências criminais, caso não participem diretamente do ato, nem aos julgamentos sociais.  “Esse tratamento desigual reflete uma visão da mulher como um ‘útero a serviço da sociedade’", comenta.

Carolina* sofre as consequências do aborto inseguro até hoje. “Eu sou anêmica e meu psicológico ficou muito abalado”, relembra. Ela acredita que o procedimento teria sido diferente se estivesse em um país em que o aborto fosse legalizado. “Até porque, ele encontrou o remédio com a maior facilidade do mundo, socou em mim sem nenhum tipo de precaução ou cuidado médico e eu quase morri. Mas, graças a Deus, não aconteceu. Acredito que se fosse legalizado, nós mulheres não precisaríamos arriscar nossa vida”, diz.

*Estagiária sob supervisão do subeditor Paulo Nogueira




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