Um domingo cinza chumbo e com densas nuvens envolvendo o pico da Ibituruna. Ruas vazias e a previsão de 12°C para a madrugada deste domingo na área central, e 6°C no pico. A situação atípica em Governador Valadares, considerada uma das mais quentes de Minas Gerais, cuja temperatura beira 40°C na maior parte do ano. A sensação térmica caiu de forma espantosa no fim de semana, por causa do vento e da garoa registradas no sábado. Na terça-feira, a previsão é que a temperatura no pico seja de 4°C, quebrando a rotina da 'cidade do sol'.
Na área central, os motoboys, que passam acelerando suas motocicletas pelas ruas vazias, estão todos encapotados. Na semana passada vestiam camisetas, mas neste domingo nenhum deles se arriscou. Nos bairros ribeirinhos, a sensação de frio é ainda maior por causa do vento que sopra do Rio Doce.
Na Avenida Rio Doce, no Bairro São Paulo, Manoel Messias Azevedo, que mora do outro lado do rio, esperava a balsa para fazer a travessia. Ele e o filho saíram para um passeio de bicicleta. A balsa vazia, atracada na margem esquerda, estava sem o comandante. Mas onde estaria o balseiro? 'Ah, eu acho que ele foi embora por causa desse frio', disse Azevedo, que trabalha em um frigorífico no Bairro Elvamar. Mesmo acostumado ao frio do local de trabalho, ele disse que o domingo, ali na beira do rio, “estava uma friaca”.
Se para Azevedo, que estava de passagem pela margem do rio, estava frio, para Rogério Avelino dos Santos, que mora debaixo da ponte de São Raimundo, estava gelado. “Tá um gelo aqui. De madrugada foi pior. Congelamos”, disse. Santos e oito companheiros da casa improvisada debaixo do vão da ponte são moradores de um abrigo localizado no Bairro Jardim Alice. Disse que foram expulsos de lá por causa de confusão. “Teve briga lá e fomos expulsos.”
Nascido em Governador Valadares, Santos disse que seus pais morreram há anos. Seus dois irmãos foram para Belo Horizonte e a ele só restou a rua. Contou que chegou a ser beneficiado por um programa de empregos da prefeitura, por meio de um trabalho da Secretaria Municipal de Assistência Social. “Consegui emprego no setor de obras, mas lá as pessoas me olhavam atravessado, porque eu vim das ruas. Eu me senti discriminado e saí de lá. Mas aqui está melhor, até engordei”, disse, em meio a uma gargalhada.
Na tarde de domingo, por volta das 13h, ele fazia algo inimaginável para quem mora em Governador Valadares. Estava esquentando água em uma lata. Não era pra fazer comida. Era para tomar banho. “Tem um banheirinho ali atrás, daqui a pouco vou lá." Ele disse que não se descuida da higiene, apesar de acreditar estar imune à doença. "Coronavírus não pega em nós, não. É ruim, hein?", brincou.
Atravessando a ponte
A ponte de São Raimundo, na BR 116, teto da população em situação de rua, liga grande parte da cidade à região da Ibituruna, onde está um conjunto de bairros chamados de “Niterói”, por estar do outro lado da ponte. Nesses bairros, no sopé da montanha, o frio também está mudando hábitos e dando uma contribuição gigantesca ao isolamento social desses tempos de pandemia do novo coronavírus.
Na Avenida Ibituruna, no Bairro Vila Isa, que dá acesso à estrada pavimentada que circunda as encostas, sobe e desce morros até chegar ao pico, o frio expulsou a turma da cerveja gelada, que aos domingos ocupa os bancos e o gramado do canteiro central. Não havia ninguém. Lá em cima, no Ibituruna, Cristina Sobreira, da Pousada da Serra, ligou o aquecedor. “À noite, o frio aqui foi de doer os ossos. Eu liguei o aquecedor e fiquei encapotada.” A pousada de Cristina está no meio das nuvens. Na área próxima à pousada, há quem use casaco para a neve, que por ser impermeável, esquenta o corpo e não molha os agasalhos de lã.
E vai esfriar ainda mais. O fotógrafo Ailton Catão, adepto do voo livre, consulta a previsão pelo site windguru, usado pelos pilotos de parapente e asa delta para saber sobre as condições atmosféricas ideais para a prática desse esporte. “Esse site recolhe informações de quatro fontes, organiza as tabelas e permite ao usuário um acesso às temperaturas, considerando as especificidades de sua região”, explicou. Resumindo: as tabelas mostram que Governador Valadares pode ter frio de 10°C na madrugada de terça-feira. Isso significa que, no pico do Ibituruna, a 1.123 metros de altitude, os moradores e hóspedes das pousadas vão ter os 'ossos trincados' pelos 4°C previstos.
Em baixo, na planície onde está a maior parte dos valadarenses, o frio virou assunto nas redes sociais. Os memes estão pipocando e divertindo a todos. Até memes desgastados, como o de um cachorro agasalhado, filosofando que “aqui tá tão frio que até o Djavan não encontrou um bom lugar para ler um livro”, arranca gargalhadas. Muitos afirmam que estão “rindo de nervoso”, afinal, não é todo dia que Governador Valadares despenca de 40°C para 4°C.