O pé engatado no para-choque do ônibus permite à bicicleta seguir de carona à velocidade de 40 quilômetros por hora na Avenida Nossa Senhora do Carmo, no sentido Nova Lima. A atitude é perigosa entre os carros, e contrasta com o cuidado na proteção individual que o ciclista flagrado pela reportagem do Estado de Minas mostrou ao usar máscara contra a COVID-19, embora sem o capacete. No entanto, a mochila térmica nas costas do rapaz indica que ele pertence a um grupo que, desde o início do afastamento social para conter a contaminação pelo vírus, se expôs para levar comida a quem estava em casa se resguardando do novo coronavírus (Sars-Cov-2).
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O crescimento dos serviços de delivery injetou nos primeiros meses da pandemia um grande contingente de entregadores que usam as bikes. Só em Belo Horizonte, segundo a startup de transporte 99Food, o aumento dos pedidos de entrega a domicílio foi de 20% em março. O aplicativo Mobills, de gestão de finanças pessoais, detectou que os gastos com as entregas tiveram salto de 117,21%. Boa parte dessas atividades trouxe possibilidade de ganho a quem se dispôs a pedalar, mas ampliou também sua exposição aos riscos.
Além disso, a necessidade de muitas viagens para atingir um ganho satisfatório leva esses trabalhadores a jornadas extenuantes e os impulsiona a fazer manobras arriscadas pelas ruas. Aos poucos, elas novamente receberam o fluxo de tráfego normal de veículos.
Observando-se os gráficos que refletem os acidentes de trânsito nos dois primeiros meses da pandemia, em março e abril, o número de internações de ciclistas em BH era menor. Passou de 85 em 2019 para 54 neste ano, queda de 36,5%. Esses foram os meses mais duros de quarentena, quando o tráfego despencou e os ciclistas, mesmo iniciantes, reinaram em ruas esvaziadas.
Contudo, em maio e junho, com a intensificação do trânsito devido à reabertura de comércios e outras atividades na capital, as bicicletas se depararam com mais veículos nas ruas e avenidas. Isso se traduziu diretamente em 28% mais internações nos hospitais públicos. Elas cresceram de 25 em maio e junho de 2019 para 32 no mesmo período de 2020. Não foram registrados mortos nesse período na capital mineira entre os ciclistas.
O mesmo fenômeno se repetiu na Grande BH, onde, dos 33 municípios, sete têm mais de 100 mil habitantes e, por isso, o sistema de entregas por meio de pedal convive com o tráfego urbano mais intenso. De março a abril, foram 97 internações de ciclistas em 2019, e 69 em 2020 nesses municípios. A diferença foi de 29%. Nos dois meses seguintes, os registros se alteraram com o retorno de um tráfego mais volumoso com as progressivas reaberturas do comércio e do setor de prestação de serviços. As internações, nesse novo cenário, aumentaram de 32 para 43 na Grande BH, representando acréscimo de 34,4%.
Queda geral
Em todos as demais modalidades de transporte ocorreram reduções de vítimas e de internações, com o afastamento social sendo adotado para impedir que a COVID-19 se alastrasse em Minas Gerais. Em Belo Horizonte, por exemplo, o número total de pessoas internadas por acidentes de trânsito, segundo o ministério, foi 21,7% menor neste ano, ao cair de 1.226 para 960.
Os atropelamentos sofreram redução de 42%, de 212 em 2019 para 123 em 2020. O universo de motociclistas internados também caiu, em 16%, passando de 110 para 86 no período, e os acidentados envolvendo carros também despencaram, em 28,5%, de 112 para 80. O número de pessoas que morreram aumentou entre os pedestres, passando de cinco para oito atropelamentos fatais em BH. As mortes de motociclistas caíram de oito para duas e nenhum motorista morreu em acidentes de trânsito nos períodos de 2019 e de 2020 na capital mineira.
Entregador corre contra o relógio
A falta de oportunidades no mercado formal, ainda mais estrangulado pela pandemia, levou muitos jovens para os serviços de delivery por meio de bicicletas, concentrando nas faixas etárias mais novas as internações. “Há muitos colegas novos que acham que é só você colocar um motorzinho na bike e sair acelerando. Temos de ter cuidado e respeitar o trânsito. Aprender primeiro antes de achar que já sabemos tudo. O problema é que o ganho é pouco, daí precisamos de mais horas de entrega. Já recebi R$ 3,99 para levar sanduíche da Savassi para a Cristiano Machado”, conta o entregador José Bravo Neto, de 19 anos. A faixa etária dele é a que mais acidentes vitimaram ciclistas neste ano.
m 2020, o grupo de ciclistas de 15 a 19 anos registrou 37 internações por acidentes na rede pública de Belo Horizonte, seguida pela de 20 a 29 anos, com 21 atendimentos em hospitais e unidades de saúde. Observando-se o mesmo período de 2019, os registros de internações atingiram mais as pessoas de 20 a 29 anos, com 24 registros, seguidas pela faixa dos ciclistas de 40 aos 49 anos, na qual houve 24 notificações. A permanência média desses acidentados numa internação em hospitais públicos é de três dias até o recebimento da alta médica. O custo com esses pacientes, pago pelos cofres públicos, é de R$ 89.714,44.
Os próprios ciclistas tentam soluções de apoio mútuas. “Criamos grupos de aplicativos para que um possa ajudar o outro. Se a bike estragar, quem estiver mais perto ajuda a socorrer. Cansei de colar pneus de quem tinha problemas perto de mim. Infelizmente, cair é inevitável. É uma coisa da qual você sabe que não vai escapar. São pedestres dos quais aqueles que desobedecem e pedalam no passeio precisam se desviar e há a falta de espaço pela quantidade cada vez maior de carros”, afirma Wagner Naeti, de 40, que é conhecido entre os entregadores da Praça da Savassi como o “Coroa”.
Esse título de mais velho do grupo trouxe a ele grande respeito entre os ciclistas, que escutam seus conselhos. “A gente tem experiência para passar. Conselhos importantes para dar para a rapaziada mais nova, ainda muito afoita. Já passei por muita coisa que eles podem evitar. Outro dia, um carro passou no sinal vermelho na Rua Rio Verde com Nossa Senhora do Carmo e me pegou. Isso serve para ver que não adianta ver o sinal, tem que enxergar o trânsito. Outra coisa, caí, bati com o capacete e me ralei todo. Se estivesse sem os equipamentos de proteção poderia ter sido mais grave”, conta.
Ciclovias
Atualmente, BH conta com 89,93 quilômetros de ciclovias. De acordo com a empresa gerenciadora do transporte da capital, a BHTrans, para facilitar a mobilidade nesse tempo de pandemia, em julho foram implantados cerca de 30 quilômetros de ciclofaixa, ligando as regiões Leste e Oeste da cidade, entre trechos de ciclovias já existentes, e as ciclofaixas temporárias ligando a região do Barreiro à Avenida dos Andradas, no bairro São Geraldo. As ciclofaixas temporárias têm sinalização com pinturas, cones e balizadores delimitando a área destinada ao tráfego das bicicletas.
Experiente profissional do delivery, Wagner Naeti conta que grupos de apoio mútuo foram criados para socorrer ciclistas, que agora enfrentam acidentes mais graves“Estão sendo priorizadas as ações que não envolvem aplicação de recursos financeiros para sua implementação, tendo como prioridade a alimentação do Sistema de Transporte Público e Coletivo do município. No Plano de Mobilidade de Belo Horizonte há o objetivo de incrementar a participação da mobilidade não motorizada (a pé e de bicicleta) e isso é essencial para uma cidade sustentável”, informa a BHTrans. (MP)