A safra de mexerica poncã surpreendeu as expectativas, a produção na fábrica de artigos pet segue de vento em popa e a colheita de grãos tem sido boa o bastante para o consumo interno.
Fechada “presencialmente” para o mundo desde o início da pandemia do novo coronavírus, a comunidade rural de Noiva do Cordeiro, distante 16 quilômetros do Centro de Belo Vale, cidade da Região Central de Minas, segue fiel aos preceitos do isolamento social, mantendo as porteiras trancadas à visitação e com rigidez na quarentena: se alguém retorna à família, precisa ficar 15 dias sem contato com pais, filhos, irmãos, primos e outros parentes até a certeza de que não está doente.
Um distanciamento que traz a memória de outros tempos, de segregação, que felizmente ficaram em um passado já distante.
Tão logo a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus, em 11 de Março, a comunidade Noiva do Cordeiro voltou a uma situação que conhecia muito bem. “Precisamos ficar muito atentos. Se tivermos um caso aqui, ou, indo mais longe, uma morte, será uma tragédia, pois vivemos praticamente juntos o tempo todo e há gente de diversas idades”, diz a agricultora.
Graças ao trabalho de sol a sol de toda a turma, ela pode comemorar os resultados na colheita da mexerica poncã. “Produzimos muito este ano, foram várias cargas saindo daqui. Fizemos a higienização completa dos frutos e das caixas. Os caminhoneiros disseram até que estávamos exagerando, mas é fundamental.”
Da porteira para fora
Outro esteio da economia local está na confecção de artigos pet. “Impossível parar, porém a entrega vem ocorrendo de forma diferente. As caixas são colocadas perto da porteira, para o contratador do serviço pegar. Não temos contato”, detalha Flávia.
Além do comércio externo, de olho no abastecimento doméstico a comunidade planta milho, café e hortaliças. Entre as defensoras do atual sistema de isolamento está Delina Fernandes, de 75, a matriarca da família, certa de que responsabilidade associada à labuta no campo é o melhor antídoto para a pandemia.
Confiante na receita, somente neste ano a comunidade Noiva do Cordeiro colheu para consumo 1 mil sacos (cada um com 50kg) de milho, 40 sacos de feijão, 500 caixas de mandioca, 45 sacos de café, 40kg de alho, quatro sacos de amendoim, 40 caixas de abóbora e hortaliças em geral. Já as mexericas para venda somaram algo como 10 mil caixas.
SAFRA EXCELENTE
A colheita da poncã no município de Belo Vale começou em maio e vai até o início de outubro. “Estamos na finalização, e a safra já é considerada excelente, com aumento em torno de 20% em relação à última”, explica o controlador interno da prefeitura local, Eduardo de Oliveira. “Há caminhões e caminhões saindo carregados da fruta em direção ao Rio de Janeiro, São Paulo e estados do Nordeste.”
Para a colheita da mexerica, Belo Vale, com 7,5 mil habitantes, recebeu cerca de 2 mil trabalhadores vindos principalmente do Nordeste do país. Oliveira diz que os equipamentos de proteção individual (EPIs) incluem, nesta temporada, a máscara. De acordo com a Secretaria de Agricultura de Belo Vale, saíram das lavouras do município para comercialização, de 1º de março até o fim da semana passada, 27,7 toneladas ou 1,3 milhão de caixas de mexerica poncã.
Belo Vale não segue o plano Minas Consciente, do governo estadual, mas tem padrões particulares. Até ontem (6/9), havia cinco casos suspeitos de COVID-19 e um confirmado em acompanhamento. Belo Vale registrou dois óbitos – na semana passada de um senhor de 102 anos, e, logo, no início da pandemia, de outro de 95 com histórico de problemas cardíacos, que morreu em hospital de Belo Horizonte. Atualmente, as escolas e bares locais se encontram fechados. Restaurantes reabriram.
Vitória sobre a discriminação
O distanciamento social voluntário em 2020 ajuda a entender melhor, guardadas as devidas proporções e motivos, a história de Noiva do Cordeiro, que começou a romper o isolamento em 2008, a partir de reportagens publicadas pelo Estado de Minas. Antes de tudo, vale voltar no tempo, mais exatamente ao fim do século 19.
Naquele tempo, Maria Senhorinha de Lima, que agora dá nome à escola local, natural da localidade próxima de Roças Novas, se casou com o descendente de franceses Arthur Pierre.
Três meses depois, sentindo-se infeliz, abandonou o lar e foi morar com Francisco Pereira de Araújo, no terreno onde hoje fica a comunidade. De família muito católica, Maria Senhorinha, por sua atitude corajosa. ganhou, à luz do moralismo da época, olhares de reprovação. O casal continuou junto, construiu casa e teve 12 filhos.
Em meados do século passado, Anísio Pereira, neto de Francisco e marido de dona Delina, fundou a seita protestante Noiva do Cordeiro, que batizou o local, convertendo toda a família. A nova situação piorou ainda mais as relações com os parentes católicos que viviam por perto, e terminou por impôr regras rígidas às mulheres, impedidas até de cortar os cabelos.
Em 1990, novos acontecimentos abalaram a estrutura local e, com um rompimento definitivo, permaneceram na comunidade apenas pessoas que defendiam uma sociedade temente a Deus, embora sem qualquer religião.
Colhendo, ainda na época, os frutos de um passado hostil, a comunidade foi se fechando e se protegendo de olhares de preconceito. Em vez de acolhida no meio social, era caluniada. Como os homens não conseguiam emprego, estigmatizadas que as famílias estavam, se mudavam para outras cidades em busca de sustento, enquanto as mulheres passaram a se dedicar à lavoura.
Foi assim até que, em 26 de junho de 2008, o Estado de Minas publicou reportagem contando a história da comunidade, o histórico de preconceitos sofridos especialmente pelas mulheres – chegavam a ser chamadas de prostitutas, por vender lingerie –, além da impossibilidade de acesso a serviços básicos, como saúde e educação.
Um ano depois, no Dia Internacional da Mulher, outra reportagem apontava mudanças, com destaque maior para a retomada da interação com a população de Belo Vale e a oportunidade de geração de renda. Era o princípio de um longo processo de abertura, agora interrompido pelo isolamento – este, felizmente, voluntário. E passageiro.