A ciência nunca esteve tão em evidência – não apenas como fonte mais confiável de informação sobre o novo coronavírus quanto nas expectativas em torno da vacina que pode derrotar a pandemia. Mas a importância de pesquisas que vão muito além desse assunto e abordam uma gama enorme de produção, inclusive relativas a outras doenças – algumas até bem pouco tempo no centro das atenções, como a dengue e a zika – acabaram ficando à sombra da COVID-19 e amargam um segundo ano de crise.
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Foi o que ocorreu na Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Minas Gerais, referência na pesquisa científica a partir de venenos de serpentes, aranhas, escorpiões e abelhas. As pesquisas em outras linhas continuam, mas com escala mínima nos laboratórios. Em um dos principais centros de pesquisa da América Latina, o Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a realidade é ainda mais dura: 70% da estrutura parada, de acordo com professores.
A situação é complexa, nas palavras do professor Luiz Rosa, do Departamento de Microbiologia do ICB. Dividido em vários ramos da ciência, biologia e saúde, o instituto concentra cerca de 25% de toda a pesquisa da UFMG e tem 29% das patentes da universidade. É impossível parar completamente grande parte desses estudos, sob pena de perder resultados, amostras, análises e investimento de tempo e dinheiro.
O ICB é frequentado por cerca de 2 mil pessoas diariamente, e ficou fechado por cerca de 15 dias, mas o que é prioridade máxima não parou em momento algum, caso do biotério (que abriga camundongos) e do Laboratório de Microbiologia Polar e Conexões Tropicais, do professor Rosa, coordenador de um dos projetos brasileiros na Antártida. A ordem é priorizar o que tem urgência e postergar ao máximo o restante.
“Tenho amostras raríssimas que vieram do meio do continente (Antártida) e exigem que continuemos trabalhando, pois são micro-organismos que só crescem em baixas temperaturas. Se algum equipamento falhar ou ocorrer qualquer outro problema, perdemos um trabalho de anos”, avisa.
No Departamento de Microbiologia, que engloba também a virologia, testes e diagnósticos, também há pesquisas relacionadas a Brumadinho e às consequências do rompimento da barragem B1, que tiveram o ritmo diminuído em virtude da necessidade de manter o distanciamento social, inclusive dentro dos laboratórios. “Antes da pandemia, eu trabalhava todo dia, em tempo integral. Agora, para cumprir as normas e evitar aglomeração de pessoas, só na parte da manhã”, relata.
Poucos alunos têm acesso ao Laboratório de Microbiologia Polar e Conexões Tropicais, que trabalha com material da Antártida à Amazônia, e a seleção obedeceu a critérios rigorosos. Determinou-se que ficaria em casa quem vive com pessoas integrantes do grupo de risco, quem precisasse pegar ônibus para chegar ao câmpus ou se deslocar em horário de pico. Dos 20 estudantes de graduação a pós-doutorado que trabalham com o professor Rosa, apenas dois estão no local.
“O ICB é cheio, tem vida. Hoje, em torno de 30% do instituto está aqui. É triste isso, mas entendemos a situação. Temos de nos proteger”, diz Luiz Rosa. Diante de tantos aspectos delicados, o ICB está planejando retomada mais organizada. É esperada para os próximos dias reunião para avaliar a possibilidade de aumentar a frequência às dependências da unidade. Poderão ser adotadas escalas de trabalho para manter o distanciamento. “Retomar aos poucos, mas sempre acompanhando a evolução da doença”, ressalta o professor.
Tratado
A UFMG tem outros projetos na Antártida, além da microbiologia, como os de medicina polar e arqueologia. Suspender os trabalhos, que começaram em 2006, não afetaria apenas os pesquisadores. O Brasil faz parte de um tratado internacional, composto por 29 países, com poder de votar e vetar as decisões sobre a Antártida. “É o único fórum do mundo em que o Brasil tem decisão. Uma cláusula do tratado é que o integrante deve fazer pesquisa sobre o continente. Ou seja, se pararmos a produção científica, há prejuízo em vários aspectos para o país, inclusive no que concerne ao direito de o Brasil votar o futuro de 10% do planeta, que não pertence a ninguém”, esclarece Rosa.
No laboratório de microbiologia, estudo de substâncias antivirais testa fungos da Antártida à procura de micro-organismos com poder de combater doenças como a leishmaniose, malária, zika, chikungunya e dengue. A próxima etapa será incluir vírus gripais, que farão parte do painel de testes também da COVID-19, em parceria com o Instituto René Rachou. “Se houvesse algum que fosse efetivo contra o coronavírus, por exemplo, já haveria um paliativo. Os trabalhos são contínuos, constantes e demorados. Quando aparecem doenças, já há um arsenal por trás. A ciência é silenciosa”, afirma. “Uma vacina demora de cinco a 10 anos pra ser desenvolvida. A da COVID-19 está saindo rápido porque já havia uma estrutura que permite avançar a partir da vacina de vírus similares”, exemplifica o professor.
“Geração COVID” e ameaça ao futuro
Os pesquisadores não estão livres de outras consequências da COVID-19, que podem agravar uma velha ameaça. Além do trabalho comprometido, o futuro dos bolsistas é incerto. As agências nacionais e estadual de fomento à pesquisa prorrogaram as bolsas por até seis meses, mas, como grande parte dos recursos que poderiam ser alocados em outras áreas do conhecimento foram investidos no combate à pandemia, o restante ficou em uma espécie de limbo.
“Estamos falando da próxima geração de pesquisadores que começam a ser formados desde a graduação. Uma parte dela foi perdida no ano passado durante os cortes (de bolsa). Esse é um investimento na formação de futuros professores e pesquisadores do Brasil. Sem educação e pesquisa, como avançar enquanto nação?”, questiona o professor Luiz Rosa, do Departamento de Microbiologia do ICB.
Em 2019, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que começou o ano com R$ 330 milhões a menos no caixa, ficou sem dinheiro para pagar a remuneração de pesquisadores. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) teve orçamento contingenciado, enquanto, há exatamente um ano, o Ministério da Educação (MEC) anunciava o congelamento de 5.613 bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado da Capes no país, que não mais estariam disponíveis nos editais de pesquisa. A maior parte seria disponibilizada em setembro. Em Minas, 508 bolsas deixaram de ser oferecidas.
Mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos que estavam trabalhando sem remuneração na expectativa de obter uma bolsa viram cair por terra a chance de consegui-la. Outros tiveram de voltar para suas cidades por falta de apoio financeiro e houve quem deixasse o país para tentar realizar no exterior o sonho de ser pesquisador.
Luiz Rosa teme o início do ano que vem, com a economia em queda e a retirada de recursos da saúde e da educação para cobrir outros rombos. “Teremos garantidos recursos para educação e pesquisa para manter bolsistas? Caso contrário, essa será chamada de geração COVID, porque vários pesquisadores vão se perder se não houver proteção. E também não adianta manter bolsistas e alguns recursos se o MEC não der aporte de verba suficiente para manter a estrutura da universidade.”
Verbas secaram para outras áreas
Na Fundação Ezequiel Dias (Funed), a situação é a mesma de outros centros de ensino e pesquisa. Apenas laboratórios de projetos relacionados à COVID-19 receberam verba de órgãos de fomento. Nas outras áreas, re- cursos não chegaram até o momento. A maior parte dos trabalhos é coordenada pela Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento (DPD), voltada para venenos, toxinas, virologia, imunologia, opoterápicos (tratamentos a partir de estruturas biológicas), biologia molecular, biologia celular, bioquímica de proteínas, fitoquímica, fitoterápicos, nanotecnologia e tecnologia farmacêutica, além de estudos sobre a relação saúde e meio ambiente. Há também pesquisas sendo conduzidas nas outras diretorias da fundação – o Instituto Octávio Magalhães e a Diretoria Industrial.
As atividades de laboratório não pararam, mas as presenciais foram reduzidas. Os projetos de pesquisa em andamento se mantiveram, mesmo de forma mais lenta devido à redução de pessoal para obedecer ao distanciamento. De acordo com a diretora de Pesquisa e Desenvolvimento da Funed, Sílvia Ligório Fialho, em termos de produção científico-tecnológica, os resultados se mantêm. As publicações de artigos científicos em revistas e jornais nacionais e internacionais neste ano, segundo a diretora, já ultrapassaram as do ano passado.
Mas, mesmo conseguindo cumprir com todas as entregas, é preciso se adequar à nova situação, diz Sílvia. “A adaptação ao regime de teletrabalho nos fez aprender a desenvolver nossas atividades em uma nova realidade. Alguns serviços otimizaram ações, devido à maior eficiência na realização de reuniões que antes demandavam deslocamentos.”