Jornal Estado de Minas

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Como as redes sociais aumentam a pressão estética sobre o corpo da mulher

Uma clínica em um bairro nobre de Belo Horizonte e um médico que se apresentava como cirurgião plástico em um perfil profissional no Instagram – mesmo espaço onde divulgava as fotos de procedimentos estéticos bem-sucedidos – convenceram Edisa Soloni, de 20 anos. A jovem morreu em 11 de setembro, horas após submeter-se a três cirurgias plásticas.





Assim como ela, mais de 800 mil mulheres no Brasil fizeram alguma intervenção estética em 2018, estatística mais recente publicada pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. O dado tem preocupado especialistas, não só pelo número de casos que acabam em tragédias, como o de Edisa, mas, sobretudo, pela forma como a publicidade indiscriminada em perfis médicos em redes sociais tem 'vendido sucessos' sem informar os riscos e aumenta pressão sobre a ideia de um corpo perfeito.

 

“São especialistas vendendo sonhos. Minha irmã guardava muitos prints do Instagram com os resultados e me mostrava”, recorda a irmã, Samea Soloni, de 25. Ela conta que Edisa era uma jovem batalhadora. Aos 12 anos, já tinha montado o próprio salão de beleza, no Aglomerado da Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Era vaidosa, gostava de se vestir com as melhores roupas e compartilhar fotos em redes sociais. “Pelas fotos, já dá pra ver que minha irmã era muito bonita. Só que é aquilo: mulher nunca está satisfeita com o corpo”, comenta.

 

Exumação do corpo 

A família acredita em erro médico e, agora, tenta pressionar os órgãos fiscalizadores para que punam Joshemar Heringer, o profissional que fez a cirurgia. As circunstâncias do óbito vêm sendo investigadas pela Polícia Civil, que pediu a exumação do corpo da cabeleireira para confirmar se houve mesmo a perfuração do pulmão, como suspeitam familiares.



A mãe, Arlete de Jesus Mota, e a irmã de Edisa Soloni, Samea, cobram punição para os responsáveis pelas intervenções feitas em clínica de BH (foto: REPRODUÇÃO/FACEBOOK)


“Ela não foi a primeira vítima. No Brasil, o dinheiro compra o ser humano, mas quero, de todo o meu coração, que a justiça seja feita”, afirmou a irmã. A Polícia Civil informou que o médico é investigado por outra morte de paciente, ocorrida em 2011, além de denúncias de mulheres que tiveram complicações após os procedimentos realizados por ele.

 

 

Edisa é uma entre os tantos casos de vítimas de procedimentos estéticos no país. No início do ano, foi Gisele Soares de Carvalho, de 39, quem perdeu a vida em uma clínica no Centro de BH ao se submeter a um procedimento conhecido como bioplastia.

O médico responsável por aplicar a técnica classificou o ocorrido como uma “fatalidade”. As investigações, a cargo da Polícia Civil, seguem em andamento. Não há dados oficiais de quantas mulheres tiveram complicações ou morreram nessas circunstâncias no Brasil.





Propaganda omite riscos

Tão grave quanto os riscos que procedimentos desta natureza impõem é a condição como algo normal  com que eles vêm sendo tratados nos últimos anos. “É preciso dizer os efeitos que as cirurgias podem ter, falar para a paciente que ela pode morrer em procedimentos simples. Isso acontece de forma bem comum e nem sempre é culpa do profissional. É o risco de quem encara a cirurgia”, alerta o advogado Renato Assis, especialista em direito da saúde.

 

Acostumado a atender casos que vão parar na Justiça, ele conta que os erros em procedimentos, dos mais simples aos mais complexos, são muito comuns, embora pouco divulgados. E acredita que a publicidade irresponsável em redes sociais, que vende só alegria, sem alertar sobre possíveis complicações, tem contribuído para o crescimento desenfreado desse mercado da beleza.

“Hoje, existem muitos casos de influenciadores digitais indicando médicos. Isso é um risco grande para quem está sendo influenciado e que vai contratar um médico que nem sequer conhece. Não sabe os riscos, ele nem sequer sabe da cirurgia. Isso é muito ruim para todos. Isso afasta do que seria um marketing médico ideal e aproxima todos de um risco”, alerta o advogado.





 

A irmã de Edisa acredita que a jovem não foi informada sobre os reais riscos do pacote com três cirurgias que comprou por cerca de R$ 11 mil. “Os procedimentos foram feitos no mesmo dia da primeira e única consulta. Ele  só passou o valor da cirurgia e não falou nada sobre os riscos. Qual foi o momento em que ele viu os exames dela?”, questiona Samea.

A irmã sustenta que se o processo tivesse sido conduzido de forma correta pelo médico, a irmã não teria morrido. “O risco cirúrgico dela apresentou uma pequena mancha no coração. Ela estaria apta para poder operar, mas somente em hospital, e não em clínica como foi realizado”, alega Samea.

 

Sem imagens

Segundo orientação do Conselho Federal de Medicina, o exercício da profissão exige conhecimento técnico e científico, domínio de protocolos, cultivo de uma boa relação médico-paciente e respeito aos limites da propaganda e da publicidade médica.



Este último ponto, porém, tem sido ignorado por muitos médicos, que insistem em divulgar os famosos “antes e depois”, o que é proibido. “A cada antes e depois de um médico, existe uma infração ética. E isso já mostra um pouco do profissional. Esses médicos têm conhecimento de que é infração médica, mas eles continuam fazendo porque sabem que isso vai trazer pacientes”, analisa o advogado Renato Assis.

 

“Depois que a minha irmã operou, ele postou o resultado do procedimento nas redes sociais. Ele acabou a cirurgia, fez fotos de todos os ângulos. Ele só deletou depois que a morte foi confirmada”, relatou a irmã. Conforme previsto na Resolução CFM 1.974/11, não é permitido expor a imagem do paciente como forma de divulgar técnica, método ou resultado de tratamento, mesmo com a autorização expressa dele. A norma permite, quando for imprescindível, o uso de imagens do paciente em trabalhos e eventos científicos, com a prévia autorização expressa dele ou de seu representante legal.

 

No mesmo dia, Edisa, de 25 anos, passou por remoção de gordura e pele do abdômen, inserção nos glúteos e lipo na papada (foto: Reprodução/Redes sociais)

Mito do corpo perfeito 

A psicanalista e influenciadora Manuela Xavier explica que o fenômeno da busca desenfreada por procedimentos estéticos tem cunho de origem social, mas, sobretudo, econômica. A psicanalista defende que a ideia de beleza foi um conceito transformado com finalidades comerciais para ser algo que possa ser produzido.



 “É imposto um problema para se vender a solução. Como o mercado de beleza serve para  vender beleza, então, a beleza não existe. Não se entende que o bonito é o natural. Ele é bonito desde que seja um natural forjado”, alerta a doutora e mestra em psicologia clínica pela PUC Rio.

 

Do padrão artificial ‘Kim Kardashian’ de curvas ao natural fabricado dos lábios rosados, a utopia do corpo perfeito continua tão inalcançável como sempre. Só que, agora, o caminho para atingir o inatingível são os blocos cirúrgicos e clínicas estéticas. “Essa é a ideia de um corpo cada vez mais manipulado. Esse não é um corpo real.

E para que você tenha aquele corpo, você tem de apagar as suas características. As Kardashians trouxeram um ideal de harmonizado em que os seios, as nádegas, as sobrancelhas, os contornos tenham a mesma proporção. Nenhuma mulher vai ter, a não ser que ela compre”, pontua a psicanalista.





 

Manuela  destaca o fato de que a existência das mulheres vai muito além de sua aparência física e essa distorção da real função de seus corpos contribui para uma eterna insatisfação e para que esse mercado continue em constante crescimento.

 “O seu corpo não foi feito para embelezar. O seu corpo foi feito para viver, para trabalhar, pra transar, para se realizar. Existe algo na socialização que faz com que a gente se sinta desconfortável com o nosso corpo. Mas quando a gente entende que essa insatisfação foi implantada em nome da necessidade da aceitação, a gente consegue entender que não se trata do corpo.”

 

Segundo no ranking

O Brasil é o segundo país que mais faz cirurgias estéticas (superado pelos Estados Unidos), de acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS). A lipoaspiração, procedimento feito pela jovem que morreu ao ser atendida em uma clínica de estética na Savassi, é a segunda cirurgia plástica mais realizada no país, atrás somente do implante de silicone nas mamas. 





 

Clínica nega irregularidades

O hospital dia conhecido como Clínica Belissima diz que vem colaborando com as autoridades e sustenta que não há qualquer determinação de autoridade relativa ao seu fechamento, mas que a direção optou por suspender temporariamente os procedimentos cirúrgicos.


 A iniciativa, segundo o estabelecimento, foi voluntária, “para evitar tumulto”. A clínica afirma que recebeu o delegado de polícia, acompanhado de perito, em setembro, para vistoria de suas dependências, mesmo sem a apresentação de um mandado judicial ou ordem de serviço expedida pela autoridade policial.

 

“Isso porque o Hospital Dia sabe da qualidade de sua infraestrutura, que conta com um avançado centro cirúrgico, com capacidade de suporte pré e pós-operatórios, além de todas as instalações necessárias à realização dos procedimentos cirúrgicos”, disse.



Sobre o caso de 2011, que a Polícia Civil diz investigar, a empresa observa que o médico foi inocentado pelo Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG) e desde então pôde exercer a profissão normalmente, de forma legal, pois não foi detectada nenhuma imperícia ou negligência referentes à conduta médica do cirurgião.

 

Sobre o procedimento de lipoaspiração, alega que não fere as normas. “O alvará do local não é de clínica e, sim, de hospital dia, o que permite realizar lipoaspiração em qualquer paciente que tenha seu risco cirúrgico liberado tecnicamente”, acrescentou.

 

A reportagem tentou contato com o médico, mas a assessoria de imprensa dele informou queo profissional vai manter “o silenciamento até que tudo seja esclarecido.” 


Três perguntas para...

 

 

O número de cirurgias plásticas e procedimentos estéticos tem crescido durante a pandemia? 

 

O número de cirurgias plásticas caiu durante a pandemia em função do isolamento e das restrições de uso de centro cirúrgico. Em contrapartida, após a liberação dos consultórios médicos e clínicas para retornar ao funcionamento, houve um aumento pela busca de procedimentos estéticos não cirúrgicos.





 

Como as redes sociais têm contribuído para isso?

Não temos dúvida de que as redes sociais e a exposição da imagem são fatores que contribuíram para esse aumento. A comunicação através da imagem e o ‘boom’ das postagens nas redes sociais fazem com que as pessoas queiram estar bem e com boa apa- rência. Após a liberação dos hospitais para a retomada das cirurgias estéticas, uma demanda que estava reprimida veio à tona, e o que temos verificado é um crescimento acentuado de cirurgias estéticas nesses últimos dois meses.

 

Os preços para as cirurgias estão mais acessíveis? 

Estão mais acessíveis. Há uma questão mercadológica relacionada ao número de cirurgiões plásticos, que aumentou desproporcionalmente ao crescimento da população nas últimas décadas, e também devido à maior acessibilidade às facilidades de crédito, como empréstimos e uso de  parcelamento no cartão de crédito e de cartas de crédito.

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