Saudade e angústia, diante de carências e da espera por uma indenização que repare danos, mas, seja qualquer valor que for, não terá capacidade de curar a dor. Ela parece interminável. Essa mistura de sentimentos resiste entre as vítimas da tragédia do incêndio criminoso ocorrido na antiga Creche Gente Inocente, em Janaúba, no Norte de Minas, que, hoje, completa três anos. Naquela manhã de 5 de outubro de 2017, o vigia Damião Soares dos Santos, de 50 anos, e portador de transtorno mental, invadiu o centro de ensino infantil e ateou fogo na sala onde estavam as crianças, provocando as mortes de 10 alunos e três adultos e deixou mais de 40 feridos. Damião também morreu.
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De acordo com o advogado e defensor público Gustavo Dayrell, da Defensoria Pública Estadual em Janaúba, devido às restrições do distanciamento social, será feita, hoje, às 16h, entrega simbólica das cestas básicas e outros itens, sem aglomeração, na sede da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Creche Municipal Gente Inocente de Janaúba (Avtjana). A campanha de arrecadação foi liderada pelas repartições da Defensoria Pública em Belo Horizonte, Curvelo, Montes Claros e Janaúba.
O prédio da creche incendiada foi demolido menos de um mês após a tragédia, que ganhou repercussão internacional. No lugar da escola, graças a doações de um grupo de empresas liderado por um empresário de Montes Claros (na mesma região), foi erguido edifício com todas as normas de segurança, diferentemente da construção anterior, que não tinha nenhum equipamento de prevenção contra o fogo. As atividades presenciais do novo prédio estão suspensas por causa da pandemia de COVID-19.
A nova creche recebeu o nome da professora Heley de Abreu Silva Batista, que morreu como heroína, tentando salvar as crianças no meio das chamas. Ela também lutou com o vigia Damião para impedir a tragédia. Heley foi retratada em documentário da TV Escola, com apresentação do ator Carlos Vereza, que está sendo exibido desde 21 de setembro.
Ação coletiva
Passados três anos, as famílias das vítimas ainda aguardam o desenrolar na Justiça de uma ação coletiva que pede indenização para reparação de danos por parte do Município de Janaúba. Foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para a antecipação parcial dos recursos, com o desembolso pela prefeitura local para as famílias atingidas, de R$ 1 mil nos casos de mortes, e de R$ 500 para os familiares das vítimas que tiveram lesões graves.Parentes reclamam que foram “esquecidos” pelo Poder Público. O sentimento é reforçado pelo presidente da Associação dos Familiares das Vitimas da Tragédia, Luiz Carlos Batista, marido da professora Heley de Abreu. “A administração pública praticamente é (sic) um descaso. Abandou mesmo as famílias (das vítimas), critica. O Executivo municipal nega.
A Prefeitura de Janaúba afirma que tem garantido o atendimento às vítimas da tragédia e que já desembolsou R$ 1,947 milhão, como antecipação parcial das indenizações. Informou ainda que doações em dinheiro, por meio da conta SOS Gente Inocente, aberta no dia seguinte ao incêndio, foram devidamente repassados às famílias atingidas. Uma rede de atendimento à saúde das vítimas foi criada pela administração municipal. “Foram realizadas contratações de profissionais de saúde para atendimento exclusivo de vítimas, junto com a disponibilidade de exames, aquisição de medicamentos e insumos específicos para esses pacientes”, diz em nota.
Inconformismo também é demonstrado pela balconista Valdirene dos Santos Borges, de 42, que perdeu o filho Mateus Felipe Rocha Santos, aos 5 anos, no incêndio no centro de ensino infantil. “De certa forma, fomos esquecidos. Ficamos com nossas dores e esquecidos pela Justiça. Em três anos, nada foi feito por nós”, reclama.
O defensor público Gustavo Dayrell ressalta que os parentes das vítimas da tragédia são pessoas carentes, “dependentes do sistema público para tratamento de saúde”. Essa foi uma das razões do acordo para a antecipação parcial do pagamento da indenização, feito mensalmente para cerca de 80 famílias. Por outro lado, ele diz que não é possível prever quando a ação terá um desfecho na Justiça.
Sofrimento sem trégua
As cicatrizes provocadas pela tragédia persistem na vida das mães, cujos filhos perderam a vida ou sofreram ferimentos graves na tragédia ocorrida na creche de Janaúba. “Apesar de terem passados três anos, a saudade e a dor parecem tão recentes. A sensação que tenho é de que tudo aconteceu agora. Parece que a ferida por dentro só aumenta”, afirma a balconista Valdirene, lembrando do filho Mateus Felipe, que sonhava em ser policial.
Religiosa, Valdirene afirma que a pandemia do coronavírus trouxe uma lição para todos. “A pandemia nos ensinou o quanto somos iguais independente da cor e religião, um aprendizado para sermos iguais”, diz. O sofrimento também parece não ter fim para a doméstica Jane Kelly da Silva Soares, de 32, mãe de Ruan Miguel Soares Silva, que morreu aos cinco anos no incêndio criminoso. “Sinto uma dor que não passa nunca. Eu queria que meu filho estivesse aqui comigo. Mas, pra mim, ele não morreu. Ele continua sempre guardado no meu coração”, afirma Jane Kelly.
Em 24 de setembro, a Justiça de Janaúba concedeu sentença favorável a uma ação de indenização por danos morais movida contra a Prefeitura municipal pelo tratorista Fernando da Conceição Silva, de 32, pai de Ruan Miguel. O valor da indenização requerida é de R$ 100 mil e a ação foi ajuizada pela Defensoria Pública de Minas Gerais.
O defensor público Gustavo Dayrell explica que Fernando, diferentemente de outros pais de crianças vitimadas na tragédia, teve a antecipação parcial negada pelo fato de estar divorciado à época da morte do filho, e não ter a guarda da criança. Por isso, ele apresentou ação individual. Por ser da primeira instância, cabe recurso à decisão. Procurada, a Prefeitura de Janaúba informou não ter sido notificada sobre a sentença, mas “que cumprirá integralmente tudo que for determinado pela Justiça”, informou o prefeito da cidade, Carlos Isaildon Mendes (PSDB).
“Foi uma grande dor no coração a perda do meu filho. Foi a maior perda que tive na vida. Sei que dinheiro não vai trazer a vida do meu filho mais. Mas Justiça deve ser feita”, reclama o pai de Ruan Miguel. Sobrevivente da tragédia, Rhuan Emanuel Dias, de 8, guarda na memória o cenário da tragédia. Ele recorda o momento em que vigia Damião atirou gasolina na sala onde estavam as crianças. “O homem (Damião) falou assim: vem tomar sorvete.! Quando fui ver... Aí, era uma bomba (o frasco de gasolina). Quando saí correndo, ele jogou a 'bomba' com o fósforo. Minha tia (a professora Heley de Abreu) me pegou no colo e pôs lá fora. Tava doendo demais por causa do sol e por causa da queimadura muito forte”, relata Rhuan Emanuel, que sofreu queimaduras em grande parte do corpo e passou por várias cirurgias.
A mae de Rhuan, Dayana Cristina Dias, de 32, lembra que passou por muito sofrimento e agradece pelo filho estar vivo. “Não foi fácil. Pensei que estava vivendo um filme de terror, que nunca iria acabar. Mas, louvo a Deus pela vida do meu filho. Três anos depois, estou passando por uma situação difícil, mas graças a Deus meu filho está aqui”, afirma. Ela lamenta que, devido as sequelas, Rhuan “não pode brincar no sol como as outras crianças”.