Ao mesmo tempo em que a qualidade do ensino público é posta ainda mais em xeque em tempos de pandemia e o debate sobre a volta das aulas presenciais em todas as redes avança para uma queda de braço de fim incerto, resultados alcançados por escolas do interior mineiro mostram que é possível fazer a diferença, apesar de todas as dificuldades da educação gratuita. A prova são dois colégios públicos do interior, que se destacaram na última avaliação de desempenho da educação básica brasileira. Em um distrito de Patos de Minas, no Alto Paranaíba, a Escola Estadual Major Mota levou o título de maior Índice de Desenvolvimento Básico da Educação (Ideb) do ensino médio do estado. E na zona rural de Governador Valadares, no Leste de Minas, a Estadual Vicente José Soares deu um salto que pegou até mesmo a direção de surpresa, destacando-se como o ensino médio de maior crescimento.
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A Escola Estadual Vicente José Soares, no distrito de Santo Antônio do Pontal, a 12 quilômetros de Valadares, foi a que mais cresceu no Ideb. Saltou de 1,6 em 2017 para 4,7 no ano passado. “Estou vibrante, não consigo dormir há dias. Sabíamos que viria um resultado bom, dado o retorno dos alunos depois da prova e o compromisso deles, mas não imaginava tão bom”, comemora a diretora, Juliane Pires da Costa. A escola, nas palavras da responsável pelo estabelecimento, é atípica.
Localizada em um povoado carente, tem 526 alunos cursando dos anos iniciais do fundamental ao 3º do médio. Em um raio de 50 quilômetros, é a única escola estadual. É habituada a enfrentar problemas básicos, como o acesso – não o tecnológico, tão falado atualmente, mas o físico, do meio para se chegar ao prédio, o que exige superar condições meteorológicas para conseguir vencer a estrada.
Juliane conta que 98% dos alunos dos anexos dependem do transporte escolar rural e, na sede, 80% só conseguem chegar graças aos ônibus e vans da prefeitura. Entre os professores, 90% saem de Governador Valadares para dar aulas. “Essa notícia é uma injeção de ânimo. Este momento de aulas on-line está muito difícil, pois a maioria dos estudantes não tem acesso (à internet ou ao computador). Estávamos cabisbaixos e desanimados”, relata. A escola tem ainda dois anexos para atendimento noturno do ensino médio. Um fica no povoado de Córrego dos Bernardos, a 15 quilômetros de asfalto e sete de estrada de terra da escola-sede. Outro está no distrito de Brejaubinha, a 25 quilômetros de asfalto e três de estrada de terra da sede.
A diretora atribui parte do resultado à mobilização feita ano passado para conseguir dos alunos engajamento para se submeter ao teste do Ideb. “Fizemos um grande trabalho, pois os alunos do 3º ano fazem pensando que vão ganhar nada com isso. Batalhamos a parte motivacional, falando da importância da prova, destacamos que eles tinham condição e capacidade, e que estudando e dedicando iriam conseguir”, lembra. No processo que envolveu professores, pais e alunos, matemática, que tinha as notas mais baixas nas avaliações externas, foi prioridade. Em língua portuguesa, valeram os projetos de leitura.
SAINDO DO ATOLEIRO
O mesmo trabalho de motivação foi feito com o 9º ano, que na edição 2017 do Ideb não teve condição de ser avaliado. “As provas sempre ocorrem em novembro, época de chuva. As estradas são muito ruins, tem carro que nem passa”, conta Juliane. Na última avaliação, os estudantes foram recebidos com um belo café da manhã para garantir energia durante o exame. “Era importante eles se sentirem à vontade, pois sabemos que muitos não têm o que comer em casa. Tudo isso é uma forma de motivar e fazer com que eles vejam as avaliações não de forma punitiva, mas como um caminho para produzir resultados bons. Mesmo estando em zona rural, temos ótimos professores e uma equipe engajada, que busca educação de qualidade.”
Os resultados muitas vezes são produzidos em meios e situações adversas. Em 2018, os alunos da Vicente José Soares ficaram 47 dias sem aula por causa da greve dos motoristas de transporte escolar. “Alguns alunos iam à escola por conta própria. Teve gente que andou 18 quilômetros diariamente, à noite, em área rural que nem poste de iluminação tem. E foram esses meninos que fizeram a prova no ano passado.”
No ensino fundamental, os anos iniciais da escola ficaram abaixo da meta (5,9) e conservaram a nota do último Ideb (5,5). No 9º ano, a escola tirou 4,9 (0,1 abaixo da meta). “Foi muito gratificante também, pois são alunos com quem temos de trabalhar a maturidade”, explica Juliane. “Educação é um divisor de águas na vida da gente. É uma luta para que muitos fiquem no ensino médio. Eles trabalham o dia todo e é preciso sempre destacar que o estudo fará com que cresçam profissionalmente e sofram menos no mercado de trabalho.”
Risco de recuar após ano atípico
Os resultados do Ideb mostram que a nota média padronizada, calculada a partir das proficiências em língua portuguesa e matemática no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) chegou a 4,76, um décimo acima da maior nota anteriormente obtida pelo estado, em 2007. Já no indicador de rendimento, Minas alcançou 0,84, alta de três décimos em relação ao maior valor alcançado, em 2013. Um dos pontos mais expressivos para conquistar esses resultados foi a queda no abandono escolar, segundo a secretaria, resultado do trabalho de busca ativa a alunos faltosos e reforço, implementados no ano passado.
Outro ponto, “um risco calculado”, de acordo com Júlia Sant’Anna, foi o aumento da participação dos alunos na prova do Saeb. Em 2017, foram 56% das escolas, quanto em 2019 esse percentual subiu para 77%. “Não tenho a menor dúvida de que Minas voltará a ser referência em ensino fundamental, como já foi, e que se tornará no ensino médio.”
Mas será preciso manter o foco, para não estagnar novamente ou, pior ainda, recuar. Não só em fluxo e proficiência, mas, sobretudo, no fantasma sempre presente da evasão escolar. O medo geral é de que a pandemia acentue o problema e, por isso, independentemente da unidade da federação, diminuir esses efeitos se tornou o principal desafio dos secretários de Educação em todo o país.
Em Minas, durante a pandemia, a estratégia de buscar em casa estudantes que sumiram das salas de aula virtuais ganhou força, segundo Júlia Sant’Anna. A entrega do material de estudos é nominal e cada diretor tem que dar conta se determinado nome e número de matrícula recebeu os planos tutorados. “Alguns alunos infrequentes retornaram aos estudos no período remoto. Fomos de casa em casa e fizemos uma busca muito mais ativa que no ano passado”, sustenta.
Na retomada presencial, o grande trunfo para manter o desempenho no Ideb e minimizar os riscos de evasão será uma avaliação diagnóstica de cada aluno, para uma visão precisa de fragilidades e dificuldades de aprendizado durante as aulas virtuais, com plano de estudo individualizado. E as escolas campeãs do estado não querem perder suas posições no pódio. Na Estadual Vicente José Soares, todos os materiais adotados pelo estado durante o ensino remoto são impressos e entregues aos alunos, para compensar a falta de equipamento e de acesso à rede de internet na zona rural.
Para chegar aos rincões, o pessoal da escola usa um carro 4x4 cedido pela secretaria. “O ruim é que o aluno não tem tanto contato com o professor, só quando consegue acessar. Às vezes, nem é horário do professor, mas por causa dessa dificuldade na zona rural ele responde em qualquer hora que o estudante chama, pois muitos só conseguem entrar no aplicativo quando vão a Valadares ou à casa de um parente. Quando retornarmos ao presencial, será trabalho de formiguinha de novo, para não baixar nossa nota no Ideb e manter a qualidade do ensino”, afirma a diretora Juliane Pires da Costa.
Campeã do Ideb ainda luta pela continuidade
Em Patos de Minas, no Alto Paranaíba, a Escola Estadual Major Mota é o destaque no estado como o colégio da rede estadual de ensino mais bem avaliado no Ideb, com nota 5,8. Com 99 alunos dos ensinos fundamental e médio, o estabelecimento, localizado no distrito de Major Porto, tem média de oito a 10 estudantes por turma. O 9º ano, por exemplo, tem apenas quatro, permitindo um ensino pra lá de personalizado.
“Quando algum aluno tem dificuldade, o professor revê conteúdo, atende no contraturno, refaz provas. A intervenção pedagógica proposta no ano passado pela Secretaria de Educação ao fim de cada bimestre foi trabalhada à risca por nossos professores”, explica a diretora Marli Aparecida Barbosa Coimbra. Com uma sala de informática para poucos, os estudantes têm ainda o pri-vilégio de ter computadores individua- lizados.
Apesar de ter uma turminha de ouro, resta o desafio de continuidade do percurso escolar. “Tínhamos alunos excelentes em matemática, que sempre ganhavam medalha ou menção honrosa na Olimpíada de Matemática. Mas, no finalzinho, quase ninguém manifestou interesse pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio)”, conta Marli. Apenas duas alunas estudaram para entrar na universidade – ambas para medicina, tendo uma delas passado numa instituição privada na cidade. Outros deixaram de lado os estudos para abrir seus próprios negócios. “Minha vontade é de que estudassem, pois eu sei da capacidade deles. Mas menino da zona rural tem disso, porque começa a trabalhar cedo. É frustrante para mim, como educadora, não ver essa continuidade.”
‘APAGÃO’ O salto mostrado nessa edição do Ideb é indicativo do fim de um “apagão no ensino a que o estado esteve submetido nos últimos anos”, na avaliação da secretária de Estado de Educação, Júlia Sant’Anna. Crítica das metas, ela lembra que esses objetivos de notas foram calculados em 2005, há 15 anos, em uma realidade na qual o Brasil tinha outra dinâmica na política educacional. “Naquela época, Minas Gerais era, inclusive, liderança no país. O estado tem a segunda maior meta para o nível médio brasileiro, atrás apenas de Santa Catarina, que está aquém de nós no ranking dessa etapa de ensino”, afirma.
“O foco de Minas precisava ser o ensino médio, que nunca havia sido uma etapa em que o estado tivesse bastante sucesso. A edição de 2019 mostra uma política bem-sucedida do ensino médio no estado”, afirma. Ela defende a revisão constante das metas a partir desse novo ciclo do Ideb, que será medido em 2021, e a valorização de fluxo e proficiência, para além de metas. “Minas colheu seu melhor Ideb de ensino médio, tendo como reflexo os melhores indicadores de proficiência e fluxo (aprovação), além da segunda maior queda de abandono no Brasil”, diz.