Jornal Estado de Minas

NA LINHA DE FOGO

Enquanto falta efetivo aos bombeiros, concursados lutam por nomeação


Em qualquer guerra, toda tropa precisa de armas. E armas precisam de pessoas para ser acionadas. Nas  batalhas que Minas Gerais enfrenta contra o fogo ano a ano não é diferente. As queimadas aumentam de forma desenfreada, e, mesmo com apoio material, a quantidade de soldados não acompanha essa matemática. O estado apresenta um déficit de aproximadamente 2.500 militares nas fileiras do Corpo de Bombeiros. O resultado desse quadro é dramático: sobrecarga de trabalho dos guerreiros em campo.




 
Há, no entanto, uma leve esperança enquanto as cinzas caem sobre a vegetação devastada pelo fogo. No próximo mês, 500 pessoas aprovadas em concurso começam treinamento para atuar no Corpo de Bombeiros.

Outras 248, que passaram em todas as etapas, mas não foram chamadas devido à limitação de vagas imposta no certame, lutam para entrar na corporação e dividir o peso do calor extenuante com quem já está em campo.

Pela Lei estadual 22.415/15, deveriam compor a agenda de serviço 7.999 praças e oficiais. Hoje, a instituição alcança aproximadamente 70% dessa recomendação. E esses 30% faltantes ainda podem não ser suficientes. É o que aponta o presidente da Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares de Minas Gerais (Aspra/PMBM), subtenente Heder Martins de Oliveira.




 
Ele lembra que a National Fire Protection Association (NFPA), entidade que reúne os bombeiros dos Estados Unidos, recomenda de 0,5 a 2,7 oficiais para cada mil habitantes. Em Minas, o número rasteja na equivalência de 0,26 bombeiro por mil habitantes, já que a população gira em torno de 20,87 milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Incêndio na Serra do Cipó. Linha de fogo na Lapinha da Serra chega a 2 quilômetros de extensão e necessita de brigadistas voluntários para ajuda no combate (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)


“Serras do Curral, da Piedade, da Moeda, do Cipó. Tudo está pegando fogo e a gente não tem efetivo suficiente. E o bombeiro é o mesmo para incêndio, salvamento, vítima de acidente, enchente, soterramento. O fogo vai embora e daqui a pouco começa a chuva”, alerta o militar.

No próximo mês, a corporação deve iniciar o Curso de Formação de Soldado (CFSd/2020) com 500 aprovados no concurso de 2019. O atraso ocorreu devido à pandemia do novo coronavírus. “A estrutura da Academia de Bombeiros forma até 1.500 (oficiais) se necessário. A questão é o governo definir que quer investir numa cultura de prevenção.”



Heder acredita que, além da exaustão do militar, a população é a maior afetada com a escassez do efetivo. “Pela necessidade, se os bombeiros tivessem 20 mil profissionais o combate seria mais eficaz. Isso significa melhor prestação de serviço à sociedade. O estado de Minas Gerais está sentindo falta”, afirma.

A fala reforça a reportagem do Estado de Minas publicada na edição de ontem sobre o tema, que mostra que moradores têm reclamado da demora no atendimento.

Do efetivo total da corporação, os números mais recentes levantados pela Aspra, em julho deste ano, mostram que existem 492 militares no abono permanência e outros 35 que integram a evasão imediata possível.



Isso significa dizer que 527 já têm tempo para ser transferidos para a reserva, mas optam por permanecer na instituição. Enquanto isso, continuam trabalhando recebendo um adicional de 30% do salário.

Sobrecarga


O EM conversou com um militar que trabalha há 21 anos na corporação e prefere não se identificar. Para ele, esses números representam sobrecarga, tanto física quanto emocional.

“A gente tem que trabalhar no combate aos incêndios. Na volta, tem que tirar sentinela. Faz resgate de suicida, acidente de automóvel. Depois, trabalho especializado em produtos perigosos. A tropa fica desgastada e, mesmo assim, a gente não foge da responsabilidade de modo algum. Mesmo com sacrifício da própria vida, esse é o lema, porque o militar vive com amor pela instituição”, declara.

Incêndio em vegetação ameaça casas no Bairro Santa Cruz, em BH (foto: 02/10/2020 - Edesio Ferreira/EM/D.A Press)


O bombeiro acredita que a chegada de novos colegas pode dar alívio ao combate aos incêndios florestais, que, para ele, estão entre as ocorrências mais difíceis de enfrentar, por causa do calor e acesso em relevo dificultoso.



“É um serviço muito desgastante e estamos trabalhando com efetivo reduzido. Percebe-se que a população teve uma crescente e a vertente da instituição diminuiu o efetivo. Totalmente desproporcional à nossa população”, diz.

Combatentes costumam usar o lema “é no fogo bem mais forte que se forja o aço bom”. É nesse mesmo fogo, porém, que a exaustão física pode assolar o aguerrido. A falta de colegas de farda para dividir o suor diário faz com que o espírito de abnegação e entrega, típico de todo bombeiro militar, se torne insuficiente para a excelência do combate.

“O atendimento não fica inapropriado, a gente dá o nosso melhor, mas às vezes pode acontecer de atrasar. Não por falta de comprometimento com o trabalho, mas com a exorbitante falha de efetivo”, desabafa o militar.





Por outro lado

Para o Corpo de Bombeiros, a dificuldade de atendimento neste período de queimadas tem sido causada por um cenário atípico de crescimento nas ocorrências.

“Evidentemente, é muito difícil ter um efetivo que consiga fazer frente a isso. O que a gente faz é uma gestão adequada”, afirma o porta-voz da corporação, tenente Pedro Aihara. “Hoje, temos uma gestão muito eficiente. Nos casos dos incêndios em parques de preservação, por exemplo, contamos com ajuda das brigadas. Mas o principal problema é a postura da população. É uma questão cultural. Nem se colocarmos um milhão de bombeiros vamos dar conta”, afirma.

Minas em chamas. Bombeiros registram série de incêndios no estado (foto: Divulgação/Corpo de Bombeiros)


Para o tenente Leonan Soares Pereira, que chefia a linha de frente de vários incêndios no estado, o efetivo é suficiente, mas as condições climáticas não estão ajudando.



“Tem hora que não adianta, o fogo é tão forte que não adianta. Simplesmente aumentar o efetivo não vai ser o suficiente. O que adianta?”, ele indaga. “Não colocar fogo. Caso contrário, mesmo com mais bombeiros, chega um ponto em que a melhor tecnologia não vai resolver. A grande questão é evitar mesmo”, responde de bate-pronto.

Luta para entrar na equipe


Grupo de excedentes do concurso pedem convocação (foto: Edesio Ferreira/EM/D.A. Press)
Aprovados na seleção de concurso para o Corpo de Bombeiros, mas fora da corporação devido à limitação de vagas para chamada imediata, 248 candidatos excedentes lutam para entrar na corporação, por meio de comissão criada com esse objetivo.

Em 6 de outubro, foi publicado o resultado final do concurso. A partir dessa data, o prazo de validade é de 30 dias, podendo ser estendido para mais um mês. Pelo edital, esses remanescentes só podem ser chamados nesse período. Caso contrário, perdem todo o processo de seleção e ainda não há previsão para outros concursos.



“Esses homens e mulheres podem gerar impacto imediato no efetivo da corporação”, afirma texto da comissão. “A realização de um novo concurso público dessa natureza é muito demorada, com tempo médio de um ano entre a prova objetiva e o início do curso de formação, que ainda demora oito meses para ser concluído, formando um militar apto a exercer a função de bombeiro”, defende o grupo.

Os candidatos ao cargo foram avaliados em diversas fases além da prova objetiva, como teste físico, de natação e exames médicos, psicológico e toxicológico. “Teve muito investimento por parte deles e dedicação para estar dentro do padrão esperado pela corporação”, diz a porta-voz do grupo, Ana Paula Galvão.

Mais importante do que isso é trilhar a carreira dos sonhos. Aos 23 anos, a estudante está no 4º período de direito. Tentar ser bombeira é um objetivo alinhado ao seu propósito de vida. “Eu me sinto atraída pelo
que eles fazem. Espero muito ser convocada para poder contribuir com a sociedade”, afirma.



Ana e Heyllon: esperança de realizar o sonho de integrar a corporação (foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press)

Ana Galvão conta que se sente aflita ao ver de longe o trabalho dos heróis do fogo. “A gente sempre segue as redes sociais de bombeiros, fica se imaginando na situação. Vira parte da sua vida”, revela. “Acho que neste momento o que essas 248 pessoas mais querem é poder ajudar”, acrescenta a jovem.

Uma das limitações do grupo é a idade, já que para estar apto a se inscrever no curso é preciso ter menos de 30 anos até o dia da matrícula. Dessa forma, prestar um novo concurso pode não ser possível para muitos desses excedentes.

É o caso de Heyllon Rodrigues Matias Barbosa, de 29, que tenta ser aprovado desde 2008. “É a última oportunidade que tenho para entrar. Ser bombeiro sempre foi um sonho”, conta o rapaz. “É um concurso muito demorado. Não tem como pegar um militar na prateleira. É muito angustiante ficar de fora porque a pessoa que enfrenta todo o processo quer entrar para fazer diferença mesmo”, conclui.

audima