Ajoelhada com agulha e linha à barra da saia da noiva, Luzia Motta Queiroz, de 58 anos, queria o mais belo contorno ao vestido para o casamento em Mariana, na Região Central de Minas Gerais. A dedicação, porém, lhe foi paga pela cliente com palavras amargas: “Esses atingidos já estão se achando. Não aguento mais ouvir sobre esses pobres coitados. Acham que são melhores do que as outras pessoas de Mariana e querem só ganhar das mineradoras”, comentou a noiva, conta Luzia, ao ouvir pelo rádio o noticiário sobre o rompimento da Barragem do Fundão, que causou a morte de 19 pessoas e desabrigou cerca de 500 famílias, entre elas a de Luzia, em 5 de novembro de 2015.
“Meu prazer era fazer os casamentos em Paracatu de Baixo. Fiz o último, antes de o rompimento ter destruído a minha comunidade. Quando ouvi aquilo, me deu um ódio, me deu uma mágoa, perdi o rumo no serviço e pedi as contas”, se lembra Luzia. “Nossas crianças são chamadas de pé de lama. A gente é chamado de pé de lama. Somos rurais. Andávamos descalços, sem nos aprontar e isso trouxe muito preconceito na área urbana de Mariana, onde fomos obrigados a morar”, afirma Luzia.
Na semana em que o colapso da barragem completa 5 anos, a reportagem do Estado de Minas compara as agressões e danos sofridos por atingidos como Luzia às salvaguardas dos 30 artigos da expressão máxima da dignidade entre os homens contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). O comparativo mostra como as garantias basilares da humanidade são reiteradamente negadas às vítimas da Barragem do Fundão.
“Meu prazer era fazer os casamentos em Paracatu de Baixo. Fiz o último, antes de o rompimento ter destruído a minha comunidade. Quando ouvi aquilo, me deu um ódio, me deu uma mágoa, perdi o rumo no serviço e pedi as contas”, se lembra Luzia. “Nossas crianças são chamadas de pé de lama. A gente é chamado de pé de lama. Somos rurais. Andávamos descalços, sem nos aprontar e isso trouxe muito preconceito na área urbana de Mariana, onde fomos obrigados a morar”, afirma Luzia.
Na semana em que o colapso da barragem completa 5 anos, a reportagem do Estado de Minas compara as agressões e danos sofridos por atingidos como Luzia às salvaguardas dos 30 artigos da expressão máxima da dignidade entre os homens contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). O comparativo mostra como as garantias basilares da humanidade são reiteradamente negadas às vítimas da Barragem do Fundão.
Com o auxílio das assessorias técnicas que ajudam os atingidos a buscar compensação pelo desastre, a reportagem do EM identificou violações diretas ou análogas ao espírito dos artigos que asseguram os direitos humanos. "São cinco anos em que se tenta negar os direitos e a reparação. Penso que um dia o Brasil pode ser responsabilizado pelas violações dos direitos humanos dos atingidos em cortes internacionais", afirma o procurador da República de Minas Gerais Helder Magno Silva.
Ao mesmo tempo em que há violações, a Fundação Renova apresenta problemas na execução de 39 dos 42 programas de reparação, de acordo com levantamento do Ministério Público Federal (MPF). A fundação foi criada em 2016 por acordo entre o poder público e as mineradoras responsáveis pela barragem (Samarco, Vale e BHP Billiton), justamente para viabilizar compensação e indenização.
Declaração Universal dos Direitos Humanos
Pela DUDH, todos os seres humanos nascem iguais em dignidade e têm direito a proteção contra discriminação. Ao mesmo tempo, ninguém deveria ser arbitrariamente exilado de suas moradias nem ter interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar, nem ataques à sua honra e reputação. Mas, mesmo sendo vítimas do maior desastre socioambiental do Brasil, nestes cinco anos, as vítimas da Barragem do Fundão são obrigados a morar em casas alugadas em Mariana e muitas ainda sofrem rotina de humilhações, enquanto empobrecem e vêem suas condições de moradia e sobrevivência se degradarem com o tempo.O principal motivo da discriminação e da recessão é a paralisação da mineradora Samarco, causadora da devastação, mas responsável por cerca de 40% dos empregos e 54% do fraturamento municipal à época. “Os atingidos foram muito bem acolhidos quando ocorreu o rompimento. Mas, com o tempo, estão sendo hostilizados pela sua condição e principalmente por receber valores das empresas (Samarco e depois Renova) ou pela interrupção da mineração em Mariana.
Essas hostilidades trouxeram grande dificuldade na sua socialização na área urbana, principalmente entre as crianças, que no início foram para escolas que não tinham apenas alunos das comunidades rurais”, observa a psicóloga da equipe de saúde mental de Mariana, Maíra Almeida Carvalho.
Essas hostilidades trouxeram grande dificuldade na sua socialização na área urbana, principalmente entre as crianças, que no início foram para escolas que não tinham apenas alunos das comunidades rurais”, observa a psicóloga da equipe de saúde mental de Mariana, Maíra Almeida Carvalho.
“Essa situação de preconceito, infelizmente, reverbera em toda a Bacia Hidrográfica do Rio Doce. Além de perderem o sustento e o modo de vida, se tornando dependentes dos culpados pelo desastre, a demora das medidas de reparação acirra esse impacto do deslocamento forçado da comunidade”, afirma o procurador da República do Espírito Santo, Paulo Henrique Camargos Trazzi, da Força-Tarefa Rio Doce.
Atrasos recorrentes
O procurador da República em Minas Eduardo Henrique de Almeida Aguiar aponta atrasos nos 42 programas de reparação da Renova como principais componentes para essa situação, "principalmente os que trabalham com retomada de renda e ambientais. Quando é para ter efetividade, a fundação busca elementos para justificar atrasos. Dizem que falta deliberação. O Comitê Interfederativo, então, delibera e a fundação recorre ao Judiciário. Sempre protelando e impedindo a recuperação, usando os atingidos e seu sofrimento. Só fazem o emergencial, transformando a vítima em criminosa", afirma.A Força-Tarefa Rio Doce reúne o MPF, integrantes do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e as defensorias públicas da União (DPU), de Minas Gerais (DPMG) e do Espírito Santo (DPES) para representar os interesses dos atingidos, do meio ambiente e criminais ao longo dos 700 quilômetros de devastação da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, entre territórios mineiros e capixabas.
Na Justiça, tramitam um acordo, o Termo de Ajustamento de Condutas da Governança, a ação civil pública do MPF, que requer R$ 155 bilhões de reparação integral e três ações criminais, por falso laudo de estabilidade da barragem, descarte irregular de lama na barragem rompida e crimes ambientais.
No caso dos crimes contra o meio ambiente, apenas sete dos 21 acusados ainda respondem pela morte de 19 pessoas e por causar inundação e poluição do ambiente, podendo ser condenadas de 6 a 12 anos de reclusão. As três mineradoras e uma consultoria também são rés nos processos desde 2016.
Na Justiça, tramitam um acordo, o Termo de Ajustamento de Condutas da Governança, a ação civil pública do MPF, que requer R$ 155 bilhões de reparação integral e três ações criminais, por falso laudo de estabilidade da barragem, descarte irregular de lama na barragem rompida e crimes ambientais.
"Nossas crianças são chamadas de pé de lama. A gente é chamado de pé de lama. Somos rurais. Andávamos descalços, sem nos aprontar e isso trouxe muito preconceito na área urbana de Mariana, onde fomos obrigados a morar"
Luzia Motta Queiroz, vítima do rompimento da barragem em Mariana
No caso dos crimes contra o meio ambiente, apenas sete dos 21 acusados ainda respondem pela morte de 19 pessoas e por causar inundação e poluição do ambiente, podendo ser condenadas de 6 a 12 anos de reclusão. As três mineradoras e uma consultoria também são rés nos processos desde 2016.
Acordos no papel e queda na renda
Há programas da Fundação Renova acordados judicialmente para ajudar na inserção dos atingidos e manter sua dignidade, como o auxílio aos planos municipais de reparação e proteção social. Com recursos e pessoal para atendimento em centros de assistência social essas ações uniriam renda e inserção, mas praticamente não saíram do papel, de acordo com a consultoria Ramboll, contratada pelo MPF.
Pelo relatório, apenas quatro (29%) de 14 planos possíveis de implantação estão validados, os demais em trâmite. “As oficinas não estão atendendo ao objetivo de capacitar e orientar os atingidos. A maior parte dos planos não se encontram validados pelas secretarias municipais de Assistência Social”, indica a consultoria.
Fotos e vídeos sobre o rompimento da Barragem do Fundão
Pelo relatório, apenas quatro (29%) de 14 planos possíveis de implantação estão validados, os demais em trâmite. “As oficinas não estão atendendo ao objetivo de capacitar e orientar os atingidos. A maior parte dos planos não se encontram validados pelas secretarias municipais de Assistência Social”, indica a consultoria.
Um dos resultados diretos disso foi a queda brutal da renda dos atingidos e a dependência ainda maior da fundação. “Em geral, essa população sobrevivia com R$ 1.026 e as famílias de baixa renda com R$ 657. Após o desastre, a renda geral caiu para R$ 525 (-49%) e a baixa renda para R$ 178 (-73%). Há 19.684 famílias cadastradas em situação de vulnerabilidade, um número maior do que o total de auxílios financeiros emergenciais que chega a 11.489 famílias”, informa pesquisa da Ramboll.
"Quando chove é só medo. A gente não sabe se a água vai entrar dentro de casa. Lembro do rompimento com a lama destruindo tudo"
Eva Maria Aparecida, vítima do rompimento da barragem em Bento Rodrigues
A radiografia de outro programa, o de participação e controle social, feito para auxiliar o diálogo, relacionamento, manifestações, reclamações e denúncias à Fundação Renova, apoiando o controle social dos atingidos nos programas de reparação, também é mal avaliado e passa uma impressão de que os atingidos se encontram abandonados à própria sorte numa comunidade estranha à original. “Ao todo, 92% das reclamações finalizadas ultrapassam o prazo determinado de 20 dias de resolução e perto de 60% do total aguardam mais de 90 dias sem resposta”, afirma a Ramboll.
A Fundação Renova apresentou números e ações de seu relatório mensal de atividades em que apresenta atrasos, mas também realizações. No caso do Programa de Proteção Social, a realização mensal prevista para o último relatório era de 75% com o entregue sendo considerado 72%. Na média dos nove meses deste ano, o relatório da Renova aponta apenas 1,2% de atraso. Até o momento, 22 profissionais atuaram em Mariana (20) e Barra Longa (2) entre assistentes sociais e psicólogos. A fundação afirma ter realizado neste ano oficinas de educação financeira nos municípios mineiros, iniciado repasses e acompanhamento dos planos, bem como trâmites e planejamentos dessas ações.
Com relação ao Programa de Comunicação, Participação, Diálogo e Controle Social, a Renova informou que mantêm as atividades em teletrabalho devido à pandemia do novo coronavírus. A fundação sustenta que 87% das pessoas que utilizaram os canais foram atendidas, 10% parcialmente e 3% não atendidas. Desse volume, 57% estariam muito satisfeitos, 31% satisfeitos, 4% indiferentes, 3% insatisfeitos e 5% muito insatisfeitos com os atendimentos.
Moradias inadequadas
Fechaduras trancam as portas, correntes com cadeados nos portões e grades nas janelas impedem que a doméstica M.V.B.S, de 66 anos, chegue sequer ao jardim da modesta casa onde vive com a filha. Mas, para ela, que foi desalojada em 2015 da comunidade de Paracatu de Baixo, em Mariana, pelo rompimento da Barragem do Fundão, regar as flores é o de menos. A casa em que vive de aluguel pago pela Fundação Renova até que lhe reassentem, fica em área de risco geológico, sob uma pedreira de 100 metros de altura na Serra da Pedrinha. “O medo que tenho é o de chover forte, rolar um pedrão lá de cima na casa e eu nem poder fugir. Minha filha me tranca todos os dias quando sai e não posso fazer nada sem ela deixar”, desabafa.
A filha, de 20 anos, não retornou à residência até o fim da tarde para explicar à reportagem por que sua mãe alegava estar sempre trancada dentro de uma casa em área de risco. Restou comunicar essa condição de aparente abandono e cárcere à Polícia Militar do município. Até o fechamento desta edição, a corporação informou que enviaria uma viatura ao local para averiguações. A cada ano, sem a entrega da nova casa nos reassentamentos das vilas arrasadas pelo rompimento da Barragem do Fundão, denominadas Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, a exposição aos perigos se torna hóspede das moradias em áreas de risco como a de M.V.B.S.
Nestes cinco anos do rompimento da Barragem do Fundão, a reportagem do Estado de Minas mostra o drama de violações diretas ou análogas à Declaração Universal dos Direitos Humanos dos atingidos. No caso da doméstica, ficar encarcerada e subjugada à vontade da filha poderia configurar estado de escravidão ou servidão, bem como submetimento a tratamento desumano ou degradante. Se ela já estivesse reassentada, certamente os vizinhos não permitiram uma situação assim. Mas quem mora perto da mulher não a conhece bem, apenas confirmando que não a veem deixando a residência quando a filha não se encontra. Na vizinhança há bocas de fumo movimentadas, o que poderia ter ajudado a motivar o cárcere privado.
A essa situação se soma a dos demais atingidos que moram em áreas de risco. Ao todo, há 449 famílias aguardando reassentamento, sendo 275 de Bento Rodrigues e 137 de Paracatu de Baixo, comunidades de Mariana, e de 37 de Gesteira, em Barra Longa. A consultoria Ramboll, que presta serviços de levantamento sobre o andamento da reparação para o Ministério Público Federal, informou ter vistoriado 184 residências temporárias de atingidos em Mariana. Destas, 32 (17,4%) se encontravam em áreas de risco geotécnico, oito (4,3%) em áreas de risco ambiental e 56 (30,4%) com problemas de habitabilidade como ventilação, umidade interna, vazamentos entre outros. O total é de 96 (52%) imóveis de moradia temporária inadequadas.
Noites de pavor
No município de Barra Longa, dos 48 imóveis vistoriados, o índice de inadequados foi ainda maior, chegando a 35 (73%) moradias. Sendo sete (15%) em áreas de risco geotécnico, 12 (25%) em áreas de risco ambiental e 16 (33%) com falta de habitabilidade, segundo a Ramboll. A situação dos atingidos que sobreviveram à avalanche de 35 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro lançados pelo rompimento da Barragem do Fundão afronta frontalmente o direito à liberdade de residência e à propriedade, no qual ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.Sem poder retornar ao vilarejo de Bento Rodrigues e aguardando já há quatro remarcações de entrega para a sua casa, a atingida Eva Maria Aparecida, de 57, passa noites de pavor quando chove em Mariana, por sua casa temporária em Mariana ser num local muito baixo, à beira do Rio do Carmo, em área de risco de alagamento. “A Fundação Renova só diz que seria bom a gente se mudar, mas não achamos lugar para ir. Quando chove é só medo. A gente, deitada, não sabe se a água vai entrar dentro de casa. Lembro do rompimento com a lama destruindo tudo”, afirma.
De acordo com Eva, não há notícias de seu terreno no reassentamento e, por não dispor de transporte, tem sido difícil visitar sua casa antiga, que ainda está em ruínas. “Para nós, é como se estivesse tudo parado. Aqui nessa casa em Mariana não é lugar para a gente viver. Saímos forçados, não pedimos para deixar o Bento. Minha mãe faleceu há seis meses e não pôde mais voltar ao Bento. Fico pensando se eu ainda volto”, indaga.
Pandemia e ações atrasam reassentamento
O reassentamento de Bento Rodrigues já foi prometido para 2018, 2019, 2020 e a meta mais atual era de as primeiras casas de pé em 2021, mas a pandemia da COVID-19 e questionamentos judiciais inviabilizaram qualquer previsão. Já Paracatu de Baixo teria moradias habitáveis primeiramente estipuladas para este ano, mas, com os atrasos, as obras começaram em julho do ano passado e não há estimativa de entrega. Segundo a consultoria Ramboll, o orçamento inicial para reassentamentos já aumentou 4,78 vezes, entre 2017 e 2019, chegando a R$ 1,65 bilhão dos quais 305 milhões (18%) foram gastos.
A recuperação de outras estruturas 1.752 infraestruturas danificadas pelo desastre também não estariam em condições, conforme a Ramboll. “Segundo a fundação, 1.110 estariam concluídas, mas, na avaliação da Ramboll, mesmo entre as obras já executadas, foram constatados muitos problemas, o que ocasiona a realização de novas obras”.
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Foram avaliadas pela Ramboll 158 intervenções dadas como concluídas pela Fundação Renova, as quais, após vistoria, foram classificadas como seis (4%) concluídas e estão funcionais, 139 (88%) não concluídas, por não estarem adequadas ao público ou por estarem localizadas em áreas de risco, 3 (2%) estão em andamento e 10 (6%) não foram encontrados. “São mais de 800 famílias que precisam ter seus imóveis reparados, sendo, inclusive, maior do que o número de famílias cadastradas para os reassentamentos”, afirma a Ramboll.
A Fundação Renova apresentou seu último relatório para a reportagem informando que os prazos para reassentamentos serão repactuados devido à pandemia do novo coronavírus. De acordo com a fundação, já foram iniciadas as construções de 35 casas e três bens espaços públicos e Bento Rodrigues, com 135 fundações feitas. Em Paracatu de Baixo, oito casas foram iniciadas. No caso de Gesteira, apenas o projeto conceitual foi terminado.
Já o programa de recuperação das demais comunidades e infraestruturas impactadas entre Fundão e Candonga apresenta no relatório da mais recente 1.602 projetos e processos concluídos; 879 acessos e cercamentos; 109 residências e propriedades recuperadas, 15 casas reconstruídas, 28 comércios reformados; e 189 quintais e lotes reparados. Desde 2019, o programa opera abaixo do previsto.